quinta-feira, 19 de março de 2009

Le nourrisson savant

Não defendo a psicanálise. Mais próprio seria dizer que tenho sobre este quadro interpretativo dos mecanismos psicológicos humanos uma postura crítica. Não obstante, além da importância inquestionável da procura de conhecimento sobre ópticas científicas diferentes das que perfilhamos, acrescento que a tradição epistemológica na qual me revejo reconhece a existência de uma multiplicidade de sistemas interpretativos da(s) realidade(s) e, por outro lado, remete para uma postura pragmática perante os mesmos: uma qualquer teoria pode, em dado momento, conter em si a melhor possibilidade de explicação disponível para um dado fenómeno. Dito isto, estava a ler um livro escrito por um psicanalista e encontrei nele descrito o interessante fenómeno onírico da criança sábia. Segundo o autor, vários são os casos, registados pela clínica psicanalítica, de indivíduos que produzem um sonho característico, em que uma criança de tenra idade se exprime com a gravidade e a profundidade intelectual de um sábio. De acordo com a psicanálise mais actual, tal sonho é a expressão - o sintoma, na linguagem psicanalítica - de um conflito intrapsíquico ocorrido durante a infância - o que é modal na interpretação psicanalítica -, caracterizado por aquilo a que os autores chamam de um "terrorismo do adulto", que impõe à criança, sobretudo através da linguagem, um sistema de representação do mundo que subaproveita as suas capacidades mentais. Por exemplo, impondo um realismo forte que amputa a dinâmica do imaginário. Segundo muitos psicanalistas, a continuação deste processo redunda na tendência para um hiperconformismo face a regras no posterior adulto. Que se vinga na ironia onírica desta representação inverosímil.

Escalas, fenómenos, decisões e confusões perceptivas

Há dias, deambulava pelo site da Fundação para a Ciência e Tecnologia e deparei-me com uma interessante citação de Hermann Muller (antigo Nobel da Medicina), que passo a transcrever. É para mim tanto mais interessante quanto é o exacto paralelo de uma outra frase que citei há dias, neste blogue, esta outra escrita por Mircea Eliade. Reza assim: "To say that a man is made up of certain chemical elements is a satisfactory description only for those who intend to use him as a fertilizer".

quinta-feira, 12 de março de 2009

Transcendente II (anexo)


«Mostraste-te, Senhor, a mim dum modo tão amável que não podes ser mais amável. Com efeito, és infinitamente amável, Deus meu. Por isso jamais poderias ser amado por alguém como és digno de ser amado, a não ser por quem te ame infinitamente. E não serias infinitamente digno de ser amado, se não amasses infinitamente. Efectivamente, a tua amabilidade, que é o poder ser infinitamente amado, deve-se ao facto de ser simultaneamente o poder amar infinitamente. Do poder amar infinitamente e do poder ser infinitamente amado provêm o nexo infinito do amor entre o amante infinito e o infinito amável. O infinito não é multiplicável.


Por isso, tu, Deus, meu, que és o amor, és amor amável e nexo do amor amante e do amor amável. Vejo em ti, Deus meu, o amor amante e o amor amável e, por isso, porque vejo em ti o amor amante e o amor amável, vejo o nexo de um e de outro amor. E isto não é senão o que vejo na tua absoluta unidade, na qual vejo a unidade que une, a unidade unível e a união de ambas. Mas seja o que for que eu veja em ti, isso és tu, Deus meu. Por isso és o amor infinito que, sem o amante, o amável e o nexo de ambos, não pode ser visto por mim como amor perfeito e natural. Com efeito, como posso conceber o amor sumamente perfeito e natural sem o amável e a união de ambos? No amor contraído experiencio que o facto de o amor ser o amante, o amável e a união de ambos deriva da essência do amor perfeito. Mas aquilo que pertence à essência do amor perfeito contraído não pode faltar ao amor absoluto do qual o amor contraído recebe o que de perfeição comporta»


Nicolau de Cusa, De Visione Dei, Capítulo XVII

Transcendente I (anexo)

Imagem extraída de: http://www.sim1.se/bilder/IMG_8708_blue_Sky2.jpg

«Pois bem: quanto se ama o conhecer e como repugna à natureza humana ser enganada, pode concluir-se do facto de que ninguém há que não prefira afligir-se em são juízo a alegrar-se na demência. Esta grande e admirável força não se encontra, fora do homem, em qualquer animal destinado à morte. É certo que alguns, para contemplarem a nossa luz, têm o sentido da vista mais agudo que o nosso; mas não podem atingir aquela luz incorpórea que na nossa mente brilha de certo modo para que possamos emitir acerca de todas as coisas um juízo correcto; porque é na medida em que a possuímos que desse juízo somos capazes. Todavia, se não há ciência nas sensações dos animais privados de razão, há neles, porém, pelo menos uma certa semelhança de ciência. Os outros seres corpóreos chamam-se sensíveis, não porque sintam mas porque são sentidos. Entre eles os vegetais imitam a sensibilidade pelo acto de se nutrirem e se reproduzirem. Todavia, estes e todos os seres corporais têm na natureza as suas causas latentes. Quanto às suas formas, que embelezam a estrutura deste mundo visível, eles apresentam-nas aos nossos sentidos para serem percebidas, parece que como se quisessem dar-se a conhecer para compensarem o conhecimento que não têm. Nós captamo-los com os sentidos do corpo, mas não é com esses sentidos do corpo que os julgamos. Com efeito, um outro sentido do homem interior, muito superior aos outros, permite-nos sentir não só o justo, mas também o injusto: - o justo pela sua beleza inteligível, o injusto pela privação dessa beleza. Para o exercício deste sentido não chega nem a agudeza da pupila, nem a abertura dos ouvidos, nem os respiradouros do nariz, nem a abóbada do palatino, nem tacto algum corpóreo. É nesse sentido que encontro a carteza de que existo e de que conheço; é nesse sentido que encontro a certeza de que amo isso tudo e de que amo».


Santo Agostinho (Agostinho de Hipona), De Civitate Dei, Livro XI, Capítulo XXVII

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Imagem extraída de: http://portodaspipas.blogs.sapo.pt/arquivo/Sky.jpg
Mircea Eliade foi, sem dúvida, um profundo e extremamente erudito historiador das religiões -tristemente conhecido, também, pela sua simpatia pelos regimes ditatoriais. Não obstante esta sua derivação ideológica, o seu trabalho intelectual é digno de particular nota. Como presentemente sou mobilizado por certos aspectos, dir-se-ia fenomenológicos, da interpretação da actividade humana, estou tentado a voltar a pegar nos "velhos" livros sobre religião. Já darei nota do porquê. Antes, uma citação de Eliade, na abertura do seu enciclopédico Tratado de história das religiões: «A ciência moderna reabilitou um princípio que certas confusões do século XIX comprometeram gravemente: é a escala que cria o fenómeno. Henri Poincaré perguntava a si próprio, com ironia: "um naturalista que só tivesse estudado um elefante ao microscópio acreditará conhecer completamente este animal?" O microscópio revela a estrutura e o mecanismo das células, estrutura e mecanismo idênticos em todos os organismos pluricelulares. E não há dúvida de que o elefante é um animal pluricelular. Mas não será mais do que isso? À escala microscópica podemos conceber uma resposta hesitante. À escala visual humana, que tem pelo menos o mérito de nos apresentar o animal como fenómeno zoológico, não há hesitação possível. Da mesma maneira, um fenómeno religioso somente se revelará como tal com a condição de ser apreendido dentro da sua própria modalidade, isto é, de ser estudado à escala religiosa.»


Princípio metodológico a que estaremos atentos, portanto: o fenómeno religioso deve ser apreendido na sua modalidade própria. Pouco importa aqui e agora discutir se a apreensão da modalidade é uma questão de escala ou não, como aduz Eliade. Avancemos uma hipótese (surgida aqui sem dúvida com uma rapidez de todo estranha ao processo intelectual que a ela pode conduzir); antes disso porém, um pressuposto (resultante de uma longa tradição de pensamento nas ciências do homem): a modalidade própria do fenómeno religioso é a relação (do sujeito) com uma qualquer transcendência. Isto ainda é, talvez e no entanto, pouco específico. Mas, notemos: deste ponto de vista, o fenómeno religioso apresenta-se numa modalidade - é esta a hipótese - próxima, quando não (por vezes?) a mesma, do amor (leia-se por exemplo o post sobre agapè, neste blogue). Quer pela relação com o transcendente (um outro é sempre transcendente), quer - pelo menos em certos momentos mais ou menos "místicos" (peço desculpa pelo atabalhoamento da linguagem, mas há que dizer em poucos parágrafos coisas que fariam correr rios de tinta) - pela natureza de gratuitidade e entrega experienciadas (donde, distintas, também aqui, da magia), quer pela respectiva modulação afectiva.


Avançarei em seguida dois exemplos. Diferentes, muito embora situados numa mesma tradição e, ao mesmo tempo, unidos pela consciência aguda da centralidade do amor na relação com o transcendente, no caso, divino.


Disse que referiria o porquê desta retoma. Conversas, tidas aqui e ali, com grandes e bons amigos, de ontem, de hoje e seguramente do futuro.