quarta-feira, 22 de abril de 2009

Escrita sociológica

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Defendendo a necessidade de uma escrita complexa, dada a complexidade dos objectos que (d)enuncia, Pierre Bourdieu foi um autor sem dúvida extraordinariamente consistente, um cientista duro no seu rigor. Deixou-nos pérolas dificilmente decifráveis, sobretudo para quem esteja mal familiarizado com a sua teoria (o que é sempre expectável), como aquela que exponho abaixo.
Já agora e para os especialistas e amadores informados, é interessante a comparação com a mensagem anterior, sobre o realismo formalista. Consegue-se a explicitação do formalismo - nomeadamente na sua forma realista, ou seja, tendente a fazer-se crer modelo "literal" da realidade - enquanto discurso ideológico.

«O círculo institucionalizado do desconhecimento colectivo que funda a crença no valor de um discurso ideológico só se instaura quando a estrutura do campo de produção e de circulação desse discurso é tal que a denegação que opera dizendo apenas o que diz sob uma forma tendente a mostrar que ele não o diz, encontra intépretes capazes de re-desconhecer o conteúdo que ele denega; enquanto que aquilo que a forma nega é re-desconhecido, ou seja, conhecido e reconhecido na forma, e apenas na forma onde ele se cumpre, negando-se. Em suma, um discurso de denegação pede uma leitura formal (ou formalista) que reconhece e reproduz a denegação inicial, em vez de a negar para descobrir aquilo que nega. A violência simbólica que encerra todo o discurso ideológico enquanto desconhecimento requerendo o re-desconhecimento só se exerce na medida em que consegue obter dos seus destinatários que o tratem como ele pede para ser tratado, quer dizer, com todo o respeito que ele merece, nas formas, enquanto forma. Uma produção ideológica é tanto mais conseguida quanto mais capaz de desacreditar quem quer que tente reduzi-la à sua verdade objectiva: o próprio da ideologia dominante é estar na posição de fazer cair a ciência da ideologia sob a acusação de ideologia; a enunciação da verdade escondida do discurso escandaliza porque diz o que seria "a última coisa a dizer"», Pierre Bourdieu, em O que falar quer dizer.

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Realismo formalista

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Pierre Bourdieu, talvez o principal responsável pela introdução, na teoria sociológica mas também antropológica, de uma ruptura com o modo de pensamento estruturalista devedor da obra de Claude Lévi-Strauss, não se cansava de repetir a importância da necessidade de não confundirmos, na análise, o modelo da realidade com a realidade do modelo. O deslizar do primeiro para o segundo dos termos desta inequação constitui, sem dúvida, uma armadilha realista, pela qual podemos, por exemplo, imaginar, no limite, perguntas como aquela que Unamuno (com alguma ironia) fazia num dos seus livros, questionando se um caranguejo resolvia equações de segundo grau. O modo de pensamento estruturalista abstraía das observações concretas para, uma vez estabelecida uma "lei" de grande generalidade, a situar no inconsciente dos observados, convertido assim em ens realissimum, realidade primacial da qual brotam todas as outras. Invariantes formais nas variações materiais, inconsciente, explicação científica. Como resistir a uma fórmula cientificamente tão sedutora? Bourdieu explica-o e é uma das suas grandezas. Talvez não nos devamos esquecer disto quando muitos, hoje, tentam "ultrapassar" Bourdieu. Não que o autor esteja certo em tudo, mas muito do que nos legou faz e fará sempre sentido.

Entretanto, deixemos exposto um excerto do impressionante Anthropologie structurale de Lévi-Strauss:

"La zoologie scientifique n'a (...) pous objet la description des formes animales, telles qu'elles sont intuitivement perçues; il s'agit surtout de définir des relations abstraites mais constantes, où paraît l'aspect intelligible du phénomène étudié. § J'ai appliqué une méthode analogue à l'étude de l'organisation sociale, et surtout des règles du mariage et des systèmes de parenté. Ainsi a-t-il été possible d'établir que l'ensemble des règles de mariage observables dans les sociétés humaines ne doivent pas être classées - comme on le fait généralement - en catégories hétérogènes et diversement intitulées: prohibition de l'inceste, types de mariage préférentiels, etc. Elles représentent toutes autant de façons d'assurer la circulation des femmes au sein du groupe social, c'est-à-dire de remplacer un système de relations consanguines, d'origine biologique, par un système sociologique d'alliance. Cette hypothèse de travail une fois formulée, on n'aurait plus qu'à entreprendre l'étude mathématique de tous les types d'echange concevables entre n partenaires pour en déduire les règles de mariage à l'oeuvre dans les sociétés existantes. Du même coup, on en découvrirait d'autres, correspondant à des sociétés possibles. Enfin on comprendrait leur fonction, leur mode d'opération, et la relation entre des formes différentes". (in Lévi-Strauss, C. (1958), Anthropologie structurale, Paris, Plon, 1974, p.75)