domingo, 18 de abril de 2010

Pragmatismo

«De um ângulo wittgensteiniano ou davidsoniano ou deweyano, não existe tal coisa como "a melhor explicação" de nada; existe apenas a explicação que melhor se ajusta ao propósito de um dado intérprete. A explicação está, como diz Davidson, sempre sob o domínio de uma descrição, e descrições alternativas do mesmo processo causal são úteis para propósitos diferentes. (...) Mas o único tipo de pessoa que estaria disposto a assumir esta atitude pragmática descontraída em relação às explicações alternativas seria alguém que ficasse contente por demarcar a ciência de um modo meramente baconiano. (...)
Numa visão pragmatista, a racionalidade não é o exercício de uma faculdade chamada "razão" - uma faculdade que está numa determinada relação com a realidade. Nem é o uso de um método. É simplesmente uma questão de ser aberto e curioso, e de confiar na persuasão em vez da força.
A "racionalidade científica" é, nesta visão, um pleonasmo, não uma especificação de uma espécie de racionalidade, particular, a paradigmática, cuja natureza pudesse ser clarificada por uma disciplina chamada "filosofia da ciência". Não lhe chamaremos ciência se for usada a força para mudar a crença nem a menos que possamos discernir alguma ligação com a nossa capacidade de predizer e controlar. Mas nenhum destes dois critérios para o uso do termo "ciência" sugere que a demarcação da ciência do resto da cultura ponha distintos problemas filosóficos.»
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Richard Rorty, «A ciência natural é uma espécie natural?»

sábado, 17 de abril de 2010

Reificação

Talvez nunca seja demais voltar a pensar no problema explicitado na citação seguinte, a que já me referi no blogue.

« De par leur nature, les cartes ou les représentations s'abstraient du temps et de l'espace vécus. Faire de ce genre de choses le facteur causal ultime revient à faire de la pratique réelle dans le temps et dans l'espace un simple sous-produit, la simple application d'un schème sans prise sur le réel. Voilà qui est d'un platonisme achevé. Mais ce platonisme, est une tentation constante, non pas seulement à cause de l'accent mis par l'intelectualisme sur la représentation, mais aussi à cause du prestige de la notion de loi telle qu'elle figure dans les sciences de la nature. La loi du carré inverse est une formule intemporelle, aspatiale, qui "dicte" le comportement de tous les corps en toute lieu. Ne devrions-nous pas nous mettre en quête de quelque chose de semblale dans les affaires humaines? Cette invitation à imiter les sciences modernes véritablement couronnée sde succès encourage aussi à la réification de la règle.»

Charles Taylor, «Suivre une règle», Critique, nºs. 579/580.

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Reflexão passageira

«A uma acabada fenomenologia do espacial pertenceria (...) a investigação dos dados de lugar (...), que informam a ordem imanente do campo de sensações visuais e o campo ele próprio. Eles relacionam-se com os lugares objectivos que aparecem como os dados qualitativos com as qualidades objectivas fenoménicas. Assim como ali se fala de signos de lugar, devemos falar aqui de signos de qualidade. O vermelho sentido é um dado fenomenológico que, animado por uma certa função de apreensão, torna presente uma qualidade objectiva; ele próprio não é uma qualidade. Uma qualidade no sentido próprio, quer dizer, uma propriedade da coisa que aparece, não é o vermelho sentido, mas o vermelho percepcionado. O vermelho sentido apenas de modo equívoco se chama vermelho, porque "vermelho" é nome de uma qualidade real. Quando se fala, em relação a certos casos fenomenológicos, de uma "coincidência" dos dois, deve porém observar-se que o vermelho sentido só através da apreensão obtém o valor de momento apresentador de uma qualidade cousal, mas que, considerado em si mesmo, não contém em si nada disto e que a "coincidência" do apresentante e do apresentado de modo algum é uma consciência de identidade cujo correlato se chame "um e o mesmo"».
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HUSSERL, Edmund, Lições para uma fenomenologia da consciência interna do tempo.
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Husserl aponta para um problema epistemológico a que, de forma esparsa, me tenho referido, aqui e ali. A não coincidência entre o sentido e a qualidade do que é sentido percebida na apreensão segundo a modalidade própria a esta cinde, numa certa acepção, o mundo "em si", "real", do mundo dos fenómenos, mundo que aparece. Ora, o problema de que falo está precisamente naquilo que implica a modalidade própria da apreensão na constituição de um mundo singular. Sabemos que um mundo (aproximadamente) comum é possível, mas sabemos também que o é a apreensão singular do mundo, nos seus aspectos mais ou menos comuns. Penso que, na investigação sociológica, importa poder dar conta deste tipo de complexidade.

sábado, 10 de abril de 2010

Condições históricas do pensamento

«Tentei mostrar que uma das razões que Hegel apresenta da legitimidade do seu sistema é afirmar que, doravante, o saber absoluto é realizável, que o tempo o permite. Desde A Fenomenologia do Espírito (1806), Hegel explica que a história da humanidade conheceu, com a Revolução Francesa e o Império, uma inflexão decisiva. Hegel diz: O Estado moderno nasceu e, porque apareceu, eu sou capaz de pensar a totalidade da história. O facto de eu ser pensador do Estado moderno - mais precisamente, o facto de eu ser pensador do e no Estado moderno - permite-me, ao mesmo tempo, ter uma visão de conjunto que torna inteligíveis os diversos progressos e os diversos dramas através dos quais a humanidade passou antes de aceder a esta novidade radical.»

François Châtelet, em Uma História da Razão.

Géneses e problemas

«Para começar gostaria de colocar este texto sob o signo de uma frase que li recentemente num texto de Lukács, mas que é, creio, de Hegel: O problema da história é a história do problema e inversamente. (...)
Esta frase implica, com efeito, a asserção de que para estudar de maneira positiva e compreensiva a história de um problema procurando apreender e compreender as transformações que sofreu, primeiro enquanto problema em consequência das transformações dos quadros mentais nos grupos sociais em que era suscitado (transformações que permitiram também entrever diferentes respostas sucessivas), é-se obrigado a relacionar estes fenómenos, que parecem depender unicamente da vida intelectual, com o conjunto da vida histórica e social; é por isso que qualquer tentativa para estudar a um nível sério a história de um problema conduz necessariamente o investigador a colocar, em relação à época que lhe interessa, o problema da história no seu conjunto.»
Lucien Goldmann, Dialéctica e Ciências Humanas I.

Estrutural-Funcionalismo

«Um sistema de parentesco e casamento pode ser considerado como um arranjo que permite às pessoas viverem juntas e cooperarem umas com as outras segundo certa ordem social. Podemos proceder ao estudo de qualquer sistema particular tal como ele existe em dado momento. Para tanto temos de considerar como esse sistema incorpora as várias pessoas pela convergência dos interesses e sentimentos e como controla e limita os conflitos que são sempre possíveis resultantes das divergências. Relativamente a qualquer aspecto de um sistema podemos indagar como é que ele contribui para o funcionamento do todo. É o que queremos significar quando referimos a sua função social. Quando conseguimos descobrir a função de um costume particular, por exemplo, o papel que ele desempenha no funcionamento do sistema a que pertence, alcançamos um entendimento ou explicação dele que é diferente e independente de toda a explicação histórica da sua formação. »

A. R. Radcliffe-Brown, em Sistemas políticos africanos de parentesco e casamento.

Frankenstein e outras histórias

«Estudos de cultura como The Golden Bough [obra clássica da Antropologia, escrita por James Frazer] e os usuais trabalhos sobre etnografia comparada, são discussões analíticas de feições culturais e desprezam todos os aspectos de integração cultural. Práticas de união dos sexos ou de morte são exemplificadas por fragmentos de comportamento escolhidos sem discriminação de entre as culturas mais diferentes, e a discussão constrói uma espécie de monstro mecânico de Frankenstein com um olho direito das Fiji, um olho esquerdo da Europa, uma perna da Terra do Fogo, a outra do Taiti, e todos os dedos das mãos e dos pés de outras proveniências. Figuras como essas não correspondem a qualquer realidade do passado ou do presente, e a dificuldade fundamental é a mesma que seria se, digamos, a psiquiatria se resolvesse num catálogo dos símbolos que os psicopatas utilizam, e ignorasse o estudo de padrões de comportamento sintomático - esquizofrenia, histeria, e perturbações maníaco-depressivas - sob que se manifestam.»

Ruth Benedict, Padrões de Cultura.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Do imediato

Manuel Silvério Marques sobre o Tratado da Evidência de Fernando Gil:

"Salvo melhor opinião, a pergunta princeps de F. Gil no Tratado da Evidência é a seguinte: de que modo os elementos da evidência a podem constituir e como se reúnem para tal? (Os elementos da evidência são múltiplos e heterogéneos: experiência sensorial, sentires ou sentimento, linguagem, metáfora, conceito).

A sua estratégia de investigação/argumentação consiste, parece-me, em fazer refluir as grandes famílias de objectividades ligadas à atenção, à ostensão... à voz..., etc., sobre a experiência subjectiva. Como ultrapassar o fosso entre o sistema conceptual discursivo e lógico e o sistema percepção-linguagem ligado aos afectos, ou mais exactamente, um sentir construído sobre a percepção e a linguagem?

- Através da tematização original da experiência da evidência como um index sui et veri. Destaca, para tal, dois subproblemas:
i. «Como é que a consciência sente e vive... a sua própria experiência linguística e sensível... e, (isso) de uma maneira unificada?»
ii. «Como é que dos sentires nasce a inteligibilidade do sentimento para, por seu turno, se transformar em sentimento de inteligibilidade?»"

MARQUES, M.S. (1996). "Um galo para Asclépio: aproximações à hipótese da passividade originária". Análise, 19, 121-137