quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Agapè - um regime de amor




Imagem retirada de:


Ocupa-me o espírito um regime de acção por demais esquecido. Esquecido por sob as trombetas avassaladoras e dissonantes da ideologia dominante, bastas vezes travestida de ciência, natural ou social. Falo do regime de acção que Luc Boltanski designa de regime de agapè. É um regime de paz, fora de equivalências. Contrariamente, por exemplo, a um regime de justiça, que pressupõe uma disputa por uma interpretação legítima, fundada em equivalências convencionais pelas quais se podem medir as pessoas, os objectos e as acções e em que existe uma expectativa de reciprocidade, aqui é o domínio da não reciprocidade, da não equivalência e da paz. É o regime pragmático da dádiva e do amor. Do desinteresse. Da incomensurabilidade. Quem está num regime de agapè dá(-se) sem expectativa de retribuição (mesmo simbólica); desde logo, porque o futuro, o porvir, não são medidos nem colocados sob o signo do cálculo, da expectativa de troca. Não necessita de justificação para (se) dar. Suspende a percepção do outro sob o modo convencional. Não o apreende como um caso particular do possível, um indivíduo pertencente a uma categoria, mas como um ser único, irrepetível, familiar. Não se exprime geralmente (por exemplo, através da língua, em que cada termo deixa sempre um resto por dizer ou fixar) sobre isso sem ferir a modalidade de acção em que se situa e mudar de regime de acção. É o regime do amor. O amor que, como tão bem sublinha Zygmunt Bauman, está hoje, as mais das vezes, esquecido ou perdido, reduzido a significante sem significado em torno de que se organizam discursos e narrativas de "especialistas sentimentais", que nos vão treinar a lidar com ele como se lida com um capital ou um investimento (analogia económica, claro está). Colocado sob a égide do investimento como do cálculo de risco associado a qualquer investimento, o amor definha, quando não esmorece e desaparece - ou chega a nunca surgir. Conforma-se a vítima com um discurso da National Geographic sobre macacos, antes do jornal das dez. Mas, verdade empírica: há quem ainda ame, há quem (se) dê sem expectativa de troca ou retribuição, há quem ainda não pense nas consequências futuras do que faz hoje no âmbito do seu amor, até porque o amor não estabelece equivalências com o futuro (é mais correcto talvez dizer que se espraia imaginariamente sobre ele). Há quem o faça, mesmo que a custo, intermitentemente e contra todo o resto de si próprio que diariamente é violentado pelos dispositivos ideológicos e sociais da opressão doce.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Acção e quotidiano


Um excerto de um capítulo de um livro que escrevi com uma colega:

As social agents engage in everyday actions, they use reference points to determine the most convenient access mode to action and subsequent course of action. The different access modes, though dependent on the agent’s ability for recognizing them, are hard-coded into most daily situations, in the sense that they present an overwhelmingly integrated code of unequivocal meaning for socially integrated agents. As such, a socially competent agent should have the ability to recognize the code, as well as the determinants central to any situation, in order to select the appropriate demeanor and mode of action with only a very slight conscious or deliberate effort. Such codes and determinants display, in most cases, a posture belonging to the regime of plan (Thévenot) and organization (even on the street), be it in terms of their degree of codification or of internal determination (such as injunctions or logic and moral rules). This is the case of the major metropolitan areas of our time, urban realities whose central property lies in the recurring human motion streams between more or less distant points, usually classified as “center” and “periphery.”

We suggest that, in this case, the regime of plan through which the agents engage in their daily motions is often shaped by normative industrial mechanisms, in the sense that they incorporate the determinations of past historical actions which have contributed to the development of a cité in an industrialized world (Boltanski & Thévenot). Thus, in certain urban contexts, the groundwork of everyday life is based on injunctions etched on objects and made recognizable to people, who in turn adjust to each situation as they are steered towards an idea of good associated with symbolic operators such as efficiency, productivity or optimization. A valued space is one that propitiates the attainment of these operators.

As expressed by Bruno Latour, though not exactly in this context, we’re faced with a kind of symmetry between the world of humankind and the world of objects and technique, as this latter element of symmetry embodies what Latour calls “the mass that is missing,” just like the mass astrophysicists lack to accomplish their dream of calculating the total mass of the universe. Latour tells us that the “moral that is missing” on the speeches of the great and not so great moralists of our time lies right in front of our eyes, in the technical world. We can find it, for example, on the seat belt and its automatic systems of alert, which configure an entire moral mechanism as they originate from notions of safety, brought to existence by the engineers who designed and built the system, in order to make it clear to the driver that if she doesn’t put it on she’d be ignoring a concept of personal safety that a general other expects of her.

Taking this problematic further, we verify that, in many cases, an agent is the more competent in her daily life as she avoids questioning the meaning of the plan action activated on a daily basis (routine), and becomes incapable of recognizing objects as the product of human activity and historical moral choices. In this sense, when the agent thinks (abandoning the normalized state of daily automatisms), she finds in herself only a mechanical or logical need, not a moral need, leading to a naturalization of the human.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Medicina e modernidade - breves aspectos

Imagem extraída de http://www.eriding.net/media/photos/history/tudor/medecine/080616_rfoster_mp_his_tudors_medecine_mediev_surgery.jpg




O desenvolvimento da medicina moderna está indissoluvelmente ligado aos progressos das ciências naturais e das tecnologias nelas baseadas. É com o desenvolvimento cumulativo do conhecimento científico-experimental e a sucessiva incorporação do mesmo na acção médica que a medicina começa a formar-se como profissão genuinamente moderna, especializada e socialmente justificada pela crescente eficácia dos seus actos. Um dos sustentáculos fundacionais da legitimidade social da profissão médica moderna, talvez mesmo o mais fundamental é, sem dúvida, a sua eficácia no diagnóstico, terapêutica e prevenção da doença, eficácia esta devedora dos avanços operados nas ciências naturais e experimentais que informam a acção médica, doravante crescentemente especializada.
A acumulação progressiva de conhecimentos oriundos das diversas ciências e a sua aplicação e utilização terapêutica confere, na realidade, uma eficácia inusitada à medicina moderna e contribui, por esta via, para a sua qualificação e engrandecimento numa ordem convencional de tipo industrial e concomitante diferenciação de outras modalidades de tratamentos da saúde e da doença, ancorados em práticas tradicionais ou esotéricas. A história da medicina regista este movimento, de autonomização progressiva de uma medicina racionalista e centrada nas possibilidades abertas pela ciência de entre as demais actividades plasmadas em torno da saúde e da doença. Como regista, igualmente, a importância que a eficácia relativa do trabalho médico face a outros registos e formas de trabalho sobre a saúde e a doença assumem nos processos de legitimação e engrandecimento de uma profissão e de uma acção organizada crescentemente relevante nas sociedades modernas.
Este é um aspecto fundamental da forma específica da legitimidade social da medicina moderna, sob uma dupla perspectiva. Em primeiro lugar, ele encontra-se, como referi, na origem histórica da autonomização da medicina face a outras formas de trabalho sobre a saúde e a doença e, paralelamente, de desvalorização social destas últimas. Este processo é um de verdadeira institucionalização da medicina enquanto actividade dominante no domínio da saúde e da doença no quadro da modernidade, no qual a progressiva legitimação desta actividade e sua integração no Estado moderno são absolutamente nucleares. Em segundo lugar, este aspecto é fundamental porque, como diversos autores têm observado, mesmo partindo de sistematizações teóricas e áreas disciplinares muito diferentes, a eficácia da medicina não mais deixou de funcionar como elemento-chave da sua legitimidade social, desde a sua entrada na modernidade até aos dias actuais.
É neste sentido que a medicina moderna, desde o seu início, se configura, até certo ponto, em associação com um mundo industrial (conceito de Boltanski e Thévenot, que não posso explicitar aqui), de tal modo que a grandeza específica do médico, a qual o diferencia dos demais praticantes das artes da saúde e da doença, se avalia pela sua competência técnica, derivada do conhecimento dos corpos, dos processos e procedimentos clínicos baseados nas aquisições das ciências e, correlativamente, pela eficácia terapêutica dos seus actos. Digo “toda a medicina moderna no seu início” porque, muito embora possamos observar a existência de uma multiplicidade de escolas, de abordagens, de modalidades de acção médica, estas ideias, de competência técnica e eficácia terapêutica do acto médico – o seu poder de curar, em suma – são, já o notei, centrais na construção da profissão e constituem o núcleo duro da justificação para a definição e a notoriedade socialmente positiva da profissão.
É difícil não notar neste quadro normativo, nesta ordem convencional industrial que acompanha a constituição da medicina moderna, a existência de um forte optimismo progressista ligado à medicina científica, eficaz e tecnicamente especializada, que tende a fazer ver a história como um campo de progresso permanente trazido pela ciência e pela sucessiva melhora da prática clínica nesta baseada. Com efeito, existe um projecto modernizador associado à prática médica de base científica, projecto este que tem como limites ideais objectivos de longa duração como a erradicação das doenças, a higienização da vida das populações ou, mais recentemente, a capacidade de controlar ao máximo o risco de contracção de futuras patologias, limite este que se estende hoje, aliás, para lá do nascimento individual e até ao material genético da potencial progenitura ou outra ascendência.
Esta medicina nova, moderna, apoiada nos processos, métodos e aquisições das ciências naturais e na respectiva transposição eficaz para o campo da clínica, demonstra a sua validade e alcance, desde logo, pelas grandes descobertas feitas no campo da saúde pelos médicos e homens de ciência. Caso dos avanços na anatomia e, ulteriormente, da bacteriologia. A autonomização da medicina enquanto domínio específico de actividade profissional apenas se impõe a partir do momento em que a mesma se torna crescentemente, cumulativamente, eficaz, em função da sua progressiva cientifização e da aplicação de métodos e processos de base científica na actividade clínica. Num plano de concorrência histórica com outras modalidades terapêuticas, estas últimas de base “empirista” e tradicional, terá sido este o factor determinante para o desenvolvimento bem sucedido da acção médica no corpo social, algo que não se verificava anteriormente.
Esta é uma transição dos saberes e fazeres tradicionais, próprios de uma sociedade pré-moderna, sustentados socialmente em justificações mais ou menos esotéricas e de cunho não industrial, para um conjunto de saberes e actividades profissionais modernas, estreitamente dependentes da investigação científica, referenciados a uma ordem convencional industrial centrada na competência, ordem da qual constituem parte destacada e que contribuem igualmente para moldar.
Tal transição dá-se através da passagem de uma medicina centrada apenas no alívio sintomático, a uma medicina centrada na eficácia curativa do acto médico. Por outras palavras, ela envolve um progressivo distanciamento do acto de cuidar do núcleo central das preocupações dos novos representantes das actividades de saúde socialmente – e legalmente – legítimas e uma organização de todo o dispositivo de construção social da clínica moderna como orientada sobretudo para a cura e prevenção da doença. Tubiana diz-nos que

Antes do nascimento da medicina moderna, no século XIX, a assistência médica era unicamente sintomática. Podia-se reduzir a dor, facilitar a vida, apoiar moralmente o doente, mas só raramente se prolongava a existência.
(…) [P]ara que a medicina moderna nascesse, [era preciso] encontrar a sua metodologia própria. Foi alcançada no início do século XIX, a partir do estudo anatómico dos doentes e depois, a partir dos meados do século XIX, graças à biologia
[1].

Esta autonomização do domínio do saber médico e sua concomitante legitimação social ligada a uma ordem convencional industrial, ambos processos escorados num domínio crescente dos processos orgânicos e suas afecções derivado do conhecimento científico, é algo que se encontra exemplarmente sintetizado numa carta de D. Pedro V de Portugal, Protector da Sociedade das Ciências Médicas, dirigida ao Marquês de Saldanha, em 19 de Fevereiro de 1859[2]. Nesta missiva, é ainda patente o entendimento do monarca acerca do dever do Estado de chamar a si a defesa de uma medicina moderna, como forma fundamental de civilização – por oposição a barbárie –, perspectiva evolucionista que fundamenta boa parte daquilo que será um compromisso entre uma ordem industrial e uma ordem cívica (sob o patrocínio público do Estado), o qual caracterizará futuramente a medicina nos países em modernização.

A minha dúvida, é a dúvida sistemática de Descartes, e a filosofia experimental de Bacon, é o caminho que as ciências naturais seguiram para progredir, e o que elas abandonam para se charlatanizarem. (…) Nas ciências naturais não é absurdo senão aquilo que a experiência não consegue confirmar. Em umas, a experiência é uma coisa inocente, na Medicina, é uma coisa muito séria. Perdoe-me o Duque que eu não proclame o livre arbítrio em Medicina. (…) A liberdade da profissão da Medicina, seria um retrocesso para a barbárie, que eu não me encontro muito disposto a promover. Considero um dos triunfos mais gloriosos da humanidade sobre si mesma, a criação das profissões, e a possibilidade do estabelecimento de leis, que regulem o exercício delas.

A importância civilizadora da medicina e a sua distinção face a outras modalidades de trabalho sobre a saúde torna-se, um pouco por todos os países em processo de modernização, uma preocupação assaz difundida e fortemente assumida pelo poder público. Neste enquadramento, as medicinas paralelas são vistas, como sugere a carta de D. Pedro V, como “charlatanice”. Tal orientação modernizadora e civilizadora, assente numa medicina construída a partir dos saberes científicos modernos, torna-se expressão característica do surgimento e aprofundamento, nas sociedades em processo de modernização, de um compromisso entre uma ordem convencional cívica e uma ordem convencional industrial.


[1] Cfr. Tubiana (1995), História da medicina e do pensamento médico, Lisboa, Teorema, p. 306.
[2] Citada por Leitão (1985), Importância da história da medicina no exercício da profissão, Jornal da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa, Tomo CXLIX, pp. 5-6.