domingo, 4 de setembro de 2011

Gramática liberal

«La grammaire du libéralisme politique diffère de celle des grandeurs en ce qu'elle ignore les biens communs autres que celui du public libéral. Elle met en revanche en avant les procédures de composition de ce public à partir des voix d'individus façonnés pour le public, procédures qui supposent que les biens soient réduits à l'état de préférences individuelles».


THÉVENOT, Laurent, in «Reconnaissances: avec Paul Ricoeur et Axel Honneth».

sexta-feira, 24 de junho de 2011

Pobrezas - II

Já agora, uma entrevista de 2008 (ano da maioria dos dados que o INE compilou e referi na mensagem anterior), de Bruto da Costa. Note-se que foi o próprio Bruto da Costa que disse recentemente que os dados do momento actual, depois da «Crise», conterão, quando surgirem, bastante mais «pobreza».

http://www.publico.pt/Sociedade/pobreza-em-portugal-e-preciso-subir-os-salarios-e-diversificar-fontes-de-rendimento_1329698


Pobrezas

Avanço abaixo alguns dados do Instituto Nacional de Estatística, relativos à pobreza e constantes no documento (cuja leitura é evidentemente importante) Sobre a pobreza, as desigualdades e a privação material em Portugal. Creio que não necessitam de comentário.


Percentagem de indivíduos em risco de pobreza antes de qualquer transferência social: 41,5%, em 2008.


Percentagem de indivíduos em risco de pobreza após transferência de pensões: 24,3%, em 2008.


Percentagem de indivíduos em risco de pobreza após transferências sociais: 17,9%, em 2008.


Olhando-se para o indicador «taxa de risco de pobreza após transferências sociais segundo a condição perante o trabalho», verifica-se que 10,3% dos indivíduos empregados estavam, em 2008, em risco de pobreza.


Em Portugal e em 2008, a taxa de intensidade da pobreza, medida pela diferença relativa entre o limiar de pobreza e o rendimento mediano dos indivíduos em risco de pobreza era de 23,6%.


Uma citação:


«Portugal é um dos países da União Europeia que se caracteriza por uma elevada assimetria na distribuição dos rendimentos dos agregados familiares. Em 2007, último ano com dados disponíveis para o conjunto dos Estados-Membros, o coeficiente de Gini nacional [indicador que mede a desigualdade calculando a média normalizada das diferenças absolutas entre o rendimento de qualquer par de indivíduos de uma população, sintetizando num único valor a assimetria da distribuição do rendimento desses indivíduos], calculado com base no rendimento disponível por adulto equivalente, correspondia a 35,8%, mais 5,2 p.p. do que o coeficiente para o conjunto dos 27 países (30,6%). Em 2007, apenas três Estados-Membros - a Bulgária, a Letónia e a Roménia - registavam níveis de desigualdade superiores ao valor estimado para Portugal».

sexta-feira, 17 de junho de 2011

Ideologia

Estava hoje a reler Ricoeur e apeteceu-me partilhar no blogue esta passagem, em que este autor se apoia na sociologia de Weber:



«O que a ideologia interpreta e justifica por excelência é a relação com as autoridades, com o sistema de autoridade. Para explicar este fenómeno, referir-me-ei (...) às análises bem conhecidas de Max Weber respeitantes à autoridade e à dominação. Toda a autoridade, observa ele, procura legitimar-se e os sistemas políticos distinguem-se conforme o seu tipo de legitimação. Ora, parece que, se toda a pretensão à legitimidade é correlativa de uma crença da parte dos indivíduos nesta legitimidade, a relação entre a pretensão emitida pela autoridade e a crença que lhe corresponde é essencialmente dissimétrica. Direi que há sempre mais na pretensão que vem da autoridade do que na crença que vai para a autoridade. Vejo aí um fenómeno irredutível de mais-valia, se por isso se entender o excesso do pedido de legitimação relativamente à oferta de crença. Talvez esta mais-valia seja a verdadeira mais-valia; toda a autoridade reclama mais do que aquilo que a nossa crença pode comportar, no duplo sentido de trazer e de suportar. É aqui que a ideologia se afirma como o reforço da mais-valia e, ao mesmo tempo, como o sistema justificativo da dominação».





Paul RICOEUR, Do Texto à Acção.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

Lançamento de livro

Não serei a pessoa em melhor posição para avaliar a qualidade do livro (que penso valer a pena ler), mas a qualidade inequívoca dos comentadores é, julgo, motivo suficiente para uma deslocação de quem é amante ou profissional de sociologia à FCSH, no dia 21:

http://cesnova.fcsh.unl.pt/?area=000&mid=000&id=CNT4df0a5cac6076

quinta-feira, 2 de junho de 2011

Acabado de sair

Foi recentemente dado à estampa o livro Sociology, Aesthetics and the City, editado por Vincenzo Mele (professor da Monmouth University, EUA) e publicado pela Imprensa da Universidade de Pisa, Itália. Escrevo nele, com Catarina Mota, um capítulo. Naturalmente, recomendo a obra.

http://www.edizioniplus.it/italiano/AspFiles/libro.asp?codlibro=728

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Dos formatos da cognição na acção

«Dans la relation entre modalités de connaissance et modalités d'action, les classements occupent une place importante, comme le montre le débat suivant de "cognition sociale". Bernard Conein, qui a remarquablement oeuvré pour ce champ disciplinaire à la frontière entre sociologie et sciences cognitives, critique l'extension que donne Rosch à son modèle de prototype lorsqu'elle l'étend aussi bien aux oiseaux qu'aux meubles. Cet élargissement ignore les différences entre "domaines conceptuels" reconnues par Scott Atran comme déterminant différentes "attentes de sens commun": identification essentielle et taxinomique propre au domaine biologique, catégorisation des objets fonctionnels (artefact), catégorisation des êtres intentionnels (personnes). Ces différences rejailissent sur la structure des catégories. Meuble n'est pas une partie de la définition de chaise, alors qu'animal est une partie de la définition de chat. La catégorisation taxinomique s'éloigne ainsi d'une identification par reconnaissance, ancrée dans la perception, cette dernière étant à l'origine du rapprochement par types. Remarquons cependant que la différence entre un rapprochement "taxinomique" logique, et un rapprochement perceptuel par typicité, peut se brouiller lorsque l'on considère les modalités d'action dans lesquelles ces catégorisations son mises en oeuvre. Ainsi que l'indique Conein, Atran observe que l'entrée de certaines formes vivantes dans le régime de l'usage, et leur emploi dans l'alimentation, le jardinage ou l'agriculture modifient le statut cognitif de certains spécimens. C'est précisement cette question qui nous a conduit à distinguer des régimes d'engagement permettant de différencier les façons de saisir des êtres, sans les attacher rigidement à des domaines comme Atran suggère de le faire. Un être de nature peut être saisi fonctionnellement, et un artefact "intelligent" traité raisonnablement dans un régime intentionnel. La notion de régime permet d'éclairer le type de propriété atribuée aux agents de l'environnement aussi bien qu'à l'acteur engagé, et donc le format de l'information pertinente pour saisir des propriétés».


THÉVENOT, L. (2006). L'action au pluriel. Paris: La Découverte.

quarta-feira, 25 de maio de 2011

Apoios



Imagem extraída de:
http://www.empresascentral.com.br/index.php?route=product/product&product_id=125


Nancy Nersessian, investigadora nomeada para o Prémio Fernando Gil 2010, tem efectuado investigação sobre os mecanismos «cognitivos e culturais» subjacentes à inovação científica. Como tenho trabalhado a partir de um quadro sociológico pragmático e me interessam os problemas colocados pelos investigadores da «cognição distribuída», resolvi deixar aqui uma citação desta autora:

«(...) The complex problem-solving practices of research in science and engineering require that science studies researchers understand and analyze them as forming and being enacted within cognitive-cultural systems. These systems comprise humans, artifacts, and procedures, ranging from techical to mentoring. A cognitive-cultural system is not a fixed entity, and thus should not be reified.»

NERSESSIAN, N. (2006). «The Cognitive-Cultural Systems of the Research Laboratory». Organization Studies.

domingo, 22 de maio de 2011

Reflexão domingueira

Admitindo que não existem conceitos «a priori» na mente humana, forçosas se tornam a apercepção e a compreensão de que quanto existe de conceitos (grosso modo) comuns na mente de diferentes sujeitos resulta de um qualquer trabalho de comunalização, como é o caso num processo de socialização ou educação. É assim, ademais, que um «fundo comum de conhecimento», ele próprio com um fundamental valor de sobrevivência para a espécie humana, é transmitido, por exemplo entre sujeitos.


Não devemos, porém, confundir um fundo conceptual comum com um fundo linguístico comum. Se é certo que cabe esclarecer ainda, por meio de complexa investigação, as relações entre os dois termos, não o é menos que existem «regiões» conceptuais da mente que não se formam exclusivamente a partir dos padrões sonoros ou escritos a que chamamos palavras.


Esta constatação não significa, entretanto, uma cedência à ideia de existência de uma experiência fundamentalmente privada do mundo, a qual se relacionaria de modo ainda por deslindar inteiramente com a linguagem verbal. Aqui, na verdade, a investigação pragmatista permite-nos afirmar que a experiência conceptual do mundo, mesmo quando não totalmente verbal(izada), depende em alguns de seus mais decisivos aspectos de dispositivos materiais e simbólicos que organizam essa experiência e, por conseguinte, os seus arranjos conceptuais. O que significa que a mesma é ainda comum. É assim que as significações conceptuais subjectivamente elaboradas a propósito do mundo podem permanecer tendo esperança de se fundarem objectivamente, isto é, no quadro do concerto comum das consciências.

Tolerância e pluralismo

«A diferença [entre uma sociedade pluralista e uma sociedade tolerante] é que uma sociedade tolerante consente na existência de modos de vida concorrentes, mas não atribui nenhum valor a esta diversidade. Pelo contrário, uma sociedade pluralista não apenas tolera modos de vida concorrentes, como também estima que a sua existência seja uma coisa importante».



Avishai MARGALIT, La société décente.

Humilhação

«(...) O conceito-chave da humilhação é a rejeição da humanidade comum. Mas uma tal rejeição não se funda na opinião ou na posição segundo a qual a pessoa rejeitada não é senão um objecto ou um animal. A rejeição consiste em comportar-se como se a pessoa fosse um objecto ou um animal. Uma tal rejeição consiste habitualmente em tratar os homens como sub-homens».

Avishai MARGALI, La société décente.

sábado, 7 de maio de 2011

Pascal sobre a tirania





«É da natureza da tirania o desejo de poder sobre o mundo inteiro e fora da sua esfera própria.

Há diversos grupos - os fortes, os belos, os inteligentes, os devotos - e cada homem reina no seu e não em qualquer outra parte. Porém, algumas vezes encontram-se, e tanto os fortes como os belos lutam pelo predomínio - estupidamente, pois o seu predomínio é doutro género. Não se entendem entre eles e cada um comete o erro de aspirar ao domínio universal. (...) As seguintes afirmações são por isso falsas e tirânicas: 'Porque sou belo, exijo respeito'; 'Sou forte, logo os homens devem amar-me...?; 'Sou... etc.'.

A tirania é o desejo de obter por um meio aquilo que só por outro se pode conseguir. Temos deveres diferentes para com diferentes predicados: o amor é a resposta adequada ao encanto, o medo à força e a crença à instrução».



Blaise PASCAL, Pensamentos.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Laurent Thévenot - Conferência

Por sugestão de um colega que, além de profissional, é também, se assim o posso dizer, um «amante» de sociologia, pus-me a procurar conferências e entrevistas de sociólogos no YouTube. Encontrei uma conferência de Laurent Thévenot, que aqui deixo. É com muito prazer que aqui exponho uma ínfima parte do trabalho deste grande sociólogo (também economista), com quem já tive a grata oportunidade passar alguns momentos discutindo trabalho sociológico e a cujo trabalho recorro muito frequentemente.

http://www.youtube.com/watch?v=z3GD7cFVvq4

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Formação e Identidades

Deixo abaixo a ligação para um blogue (que vou fazer figurar na coluna lateral deste) que disponibilizo às turmas de um mestrado em que lecciono. Faço-o por me parecer que pode ter interesse para quem se interessa pelas matérias aí trabalhadas e no dia em que surgem os produtos finais de mais um semestre.

http://formacaodeadultoseidentidades.blogspot.com/

Plagiar compensa (?)

Não resisti a colocar aqui a ligação para uma notícia muito interessante.

http://pt.euronews.net/2011/02/18/universidade-pressiona-ministro-alemao-da-defesa-para-responder-a-acusaces-de-/

Uma questão de foco



Sociologists in my tradition routinely seek understanding of social organizations by looking for trouble, for situations in which people complain that things aren't as they should be.

Howard BECKER, Telling About Society

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Carta às almas piedosas (apócrifa)

Que horror me causam os livros, Senhores; que horror eles me causam. Que horror às boas almas hão-de causar. Pois quê? Não se encontram, neles, mirabolantes viagens, impiedosas sátiras, indigestas ironias, perturbadores conceitos? Onde, se não nos livros, se vislumbram iguais - e ainda maiores - artifícios? Isso, artifícios - com que essa turbamulta de escrevinhadores espalha o mal e a sua sombra por esta nossa terra.
Tomemos o caso da juventude; é nos livros que ela se corrompe. É pela leitura, estranho e esotérico labor, que se impõem aos espíritos fracos dos mais débeis dos jovens perniciosas e deletérias mentiras. Ou não é nos seus prometidos caminhos que os mais novos julgam discernir a prática de se questionar a ordem natural das diferenças?, a pretensão de se raciocinar de modo dito autónomo e individual (expressões vazias, cujo sentido se desconhece e a nada correspondem, pois claro)?, de se desrespeitarem, enfim, a regra e a ordem estabelecida das coisas?
Que desequilíbrio, Senhores - e que imperfeição nos traz a leitura. É no próprio tecido das coisas que penetram suas artes de engano, as mesmas que sugerem possível alterar o olhar e o pensar dos homens. Velhos e novos, grandes e pequenos - assim se encontram, sem disso se darem conta, distantes da realidade e caídos no vazio exorbitante da especulação indolente!
É a soberba, a jactância, o egoísmo dos leitores, esse género decaído de homens; não os ouvis? Acaso não os ouvis perguntar sobre a razão da hierarquia?; sobre a causa das coisas?; sobre a natureza do próprio pensar? Assim constroem essa insuportável e arrogante distância sobre a urgência das coisas, assim julgam subtrair-se à necessidade verdadeira, imponente e toda-poderosa do mundo. Como esse infame e pusilânime Português, que, dissoluto, sugeriu que os havia - aos que se vão da lei da morte libertando.
Senhores, que tempos bons, os da minha aldeia! Quando o horizonte era o do olho e não havia notícia de semelhantes desregramentos. Puxava o boi o carro sem se perguntar o porquê de fazê-lo e sem, por isso, deixar de saber como e para onde ia!

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Goffman sobre a prestação de serviços especializados

«The type of social relation I will consider (...) is one where persons (clients) place themselves in the hands of other persons (servers). Ideally, the client brings to this relationship respect for the server's technical competence and trust that he will use it ethically; he also brings gratitude and a fee. On the other side, the server brings: an esoteric and empirically effective competence, and a willingness to place it at the client's disposal; professional discretion; a voluntary circumspection, leading him to exhibit a disciplined unconcern with the client's other affairs or even (in the last analysis) with why the client should want the service in the first place; and, finally, an unservile civility.»
Erving GOFFMAN, Asylums

sábado, 15 de janeiro de 2011

Simbólico e transcendência: Ricoeur


Imagem extraída de: http://gpeculturais.blogspot.com/2007/08/paul-ricoeur-um-filosofo-que-olhou-para.html

«La justification de l'herméneutique ne peut être radicale que si l'on cherche dans la nature même de la pensée réflexive le principle d'une logique du double sens, complexe et non arbitraire, rigoureuse dans ses articulations, mais irréductible à la linéarité de la logique symbolique. Cette logique n'est plus alors une logique formelle, mais une logique transcendantale; elle s'établit en effet au niveau des conditions de possibilité; non des conditions de l'objectivité d'une nature, mais des conditions de l'appropriation de notre désir d'être: c'est ainsi que la logique du double sens, propre à l'herméneutique, est d'ordre trasncendantal.»

Paul RICOEUR, De l'interprétation - Essai sur Freud.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Provincianismo

Experiências recentes e pessoais levam-me a expor aqui um delicioso texto de Fernando Pessoa. É certo que altero um pouco, com isto, o tom geral do discurso neste espaço. Mas, nem por isso me sinto menos compensado.


«Se, por um daqueles artifícios cómodos, pelos quais simplificamos a realidade com o fito de a compreender, quisermos resumir num síndroma o mal superior português, diremos que esse mal consiste no provincianismo. O facto é triste, mas não nos é peculiar. De igual doença enfermam muitos outros países, que se consideram civilizantes com orgulho e erro.

O provincianismo consiste em pertencer a uma civilização sem tomar parte no desenvolvimento superior dela — em segui-la pois mimeticamente, com uma subordinação inconsciente e feliz. O síndroma provinciano compreende, pelo menos, três sintomas flagrantes: o entusiasmo e admiração pelos grandes meios e pelas grandes cidades; o entusiasmo e admiração pelo progresso e pela modernidade; e, na esfera mental superior, a incapacidade de ironia.

Se há característica que imediatamente distinga o provinciano, é a admiração pelos grandes meios. Um parisiense não admira Paris; gosta de Paris. Como há-de admirar aquilo que é parte dele? Ninguém se admira a si mesmo, salvo um paranóico com o delírio das grandezas. Recordo-me de que uma vez, nos tempos do "Orpheu", disse a Mário de Sá-Carneiro: "V. é europeu e civilizado, salvo em uma coisa, e nessa V. é vítima da educação portuguesa. V. admira Paris, admira as grandes cidades. Se V. tivesse sido educado no estrangeiro, e sob o influxo de uma grande cultura europeia, como eu, não daria pelas grandes cidades. Estavam todas dentro de si".

O amor ao progresso e ao moderno é a outra forma do mesmo característico provinciano. Os civilizados criam o progresso, criam a moda, criam a modernidade; por isso lhes não atribuem importância de maior. Ninguém atribui importância ao que produz. Quem não produz é que admira a produção (...).

É na incapacidade de ironia que reside o traço mais fundo do provincianismo mental. Por ironia entende-se, não o dizer piadas, como se crê nos cafés e nas redações, mas o dizer uma coisa para dizer o contrário. A essência da ironia consiste em não se poder descobrir o segundo sentido do texto por nenhuma palavra dele, deduzindo-se porém esse segundo sentido do facto de ser impossível dever o texto dizer aquilo que diz. Assim, o maior de todos os ironistas, Swift, redigiu, durante uma das fomes na Irlanda, e como sátira brutal à Inglaterra, um breve escrito propondo uma solução para essa fome. Propõe que os irlandeses comam os próprios filhos. Examina com grande seriedade o problema, e expõe com clareza e ciência a utilidade das crianças de menos de sete anos como bom alimento. Nenhuma palavra nessas páginas assombrosas quebra a absoluta gravidade da exposição; ninguém poderia concluir, do texto, que a proposta não fosse feita com absoluta seriedade, se não fosse a circunstância, exterior ao texto, de que uma proposta dessas não poderia ser feita a sério.

A ironia é isto. Para a sua realização exige-se um domínio absoluto da expressão, produto de uma cultura intensa; e aquilo a que os ingleses chamam detachment — o poder de afastar-se de si mesmo, de dividir-se em dois, produto daquele "desenvolvimento da largueza de consciência" em que, segundo o historiador alemão Lamprecht, reside a essência da civilização. Para a sua realização exige-se, em outras palavras, o não se ser provinciano.

O exemplo mais flagrante do provincianismo português é Eça de Queirós. É o exemplo mais flagrante porque foi o escritor português que mais se preocupou (como todos os provincianos) em ser civilizado. As suas tentativas de ironia aterram não só pelo grau de falência, senão também pela inconsciência dela. Neste capítulo, "A Relíquia", Paio Pires a falar francês, é um documento doloroso. As próprias páginas sobre Pacheco, quase civilizadas, são estragadas por vários lapsos verbais, quebradores da imperturbabilidade que a ironia exige, e arruinadas por inteiro na introdução do desgraçado episódio da viúva de Pacheco. Compare-se Eça de Queirós, não direi já com Swift, mas, por exemplo, com Anatole France. Ver-se-á a diferença entre um jornalista, embora brilhante, de província, e um verdadeiro, se bem que limitado, artista.

Para o provincianismo há só uma terapêutica: é o saber que ele existe. O provincianismo vive da inconsciência; de nos supormos civilizados quando o não somos, de nos supormos civilizados precisamente pelas qualidades por que o não somos. O princípio da cura está na consciência da doença, o da verdade no conhecimento do erro. Quando um doido sabe que está doido, já não está doido. Estamos perto de acordar, disse Novalis, quando sonhamos que sonhamos. »

Fernando Pessoa, in 'Portugal entre Passado e Futuro'
Extraído de http://citador.pt/pensar.php?op=10&refid=200905221400&author=334