sábado, 7 de novembro de 2009

Reconhecimento e Direito




Imagem extraída de: http://www.prologos-sprachendienste.de/grafik/recht.jpg



Axel Honneth trabalha admiravelmente as relações entre modalidades de reconhecimento e ordenação jurídica no quadro da modernidade política. Fá-lo, nomeadamente, no seu livro Kampf um Annerkennung, de cuja tradução francesa, feita por Pierre Rusch, deixo abaixo alguns excertos sobre este tema concreto.



O título do post tem também que ver com algo mais pessoal: uma forma, tímida é certo, de reconhecimento por quem, pelo seu próprio percurso, me deu a possibilidade de, ainda sem dez anos de idade, frequentar a espaços os anfiteatros da Faculdade de Direito de Lisboa, onde comecei a tomar contacto com a reflexão sistemática sobre as ordens jurídicas. Não sou, nem tenho a pretensão de ser, jurista. Mas ficou-me o gosto e a curiosidade por este vastíssimo domínio do saber, mormente em quanto ele deve no nosso País - e devia naquele tempo - à reflexão germânica.



«Quelle est la qualité générale qui doit être protégée dans le sujet juridique, c'est ce qu'indique la nouvelle forme de légitimation à laquelle le droit moderne est lié par sa structure même: lorsq'un ordre juridique ne peut passer pour légitime, qu'il ne peut par conséquent compter sur l'adhésion individuelle que dans la mesure où il se fonde sur le libre consentement de tous les membres du groupe concerné, alors il faut au moins pouvoir supposer chez les sujets juridiques la capacité de se prononcer d'une manière rationnelle et autonome sur les questions morales. Sans une telle capacité, il ne serait pas concevable que les sujets aient jamais pu convenir d'un ordre quelconque. Dans cette mesure, toute communauté juridique moderne, pour la seule raison que sa légitimité repose sur l'idée d'un accord rationnel entre individus égaux en droits, préssupose la responsabilité morale de tous ses membres.



(...)



L'élargissement cumulatif des exigences juridiques individuelles, tel qu'il s'est produit dans les sociétés modernes, peut être compris comme un processus au cours duquel le champ des qualités universelles atribuées à une personne moralement responsable s'est progressivement étendu, parce qu'il a été nécessaire, sous la pression d'une lutte pour la reconnaissance, d'augmenter le nombre des conditions dont dépend la participation à la formation d'une volonté collective rationnelle.



(...)



Se reconnaître mutuellement comme des personnes juridiques, aujourd'hui, cela implique plus de choses qu'au moment où est né le droit moderne: le sujet, quand il se trouve reconnu juridiquement, n'est plus seulement respecté dans sa faculté abstracte d'óbeir à des normes morales, mais aussi dans la qualité concrète qui lui assure le niveau de vie sans lequel il ne pourrait exercer cette première capacité.



(...)



Les droits individuels revêtent un caractère public dans la mesure où ils offrent au sujet un mode d'action acceptable par tous ses partenaires d'interaction; c'est ainsi qu'ils interviennent dans la formation du respect de soi. Car avec l'activité facultative du recours en justice, l'individu dispose d'un moyen symbolique dont l'efficacité sociale peut constamment lui démontrer qu'il est une personne moralement responsable jouissant d'une reconnaissance génerale.»

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Goffman: a interacção face-a-face

Foto extraída de: http://deguy.files.wordpress.com/2008/07/goffman4.jpg


Quando os indivíduos se encontram em presença mútua imediata - qualquer que seja a razão - uma das condições fundamentais da vida social torna-se extremamente nítida: trata-se do seu carácter indicador e promissório. Não se trata apenas do facto da nossa aparência e as nossas maneiras darem indicações sobre o nosso estatuto e as nossas relações. Acontece também que a linha da nossa atenção visual, a intensidade do nosso envolvimento e a forma das nossas acções iniciais permitem aos outros adivinhar a nossa intenção imediata e o nosso objectivo, e tudo isto independentemente do facto de estarmos ou não envolvidos numa conversa verbal com eles. Correlativamente, estamos constantemente em posição de facilitar esta revelação ou de bloqueá-la, ou mesmo de induzir em erro os que nos observam. O carácter rebuscado destas observações é, ele próprio, facilitado e complicado por um processo central que falta ainda estudar sistematicamente - a ritualização social, isto é, a estandartização do comportamento corporal e vocal através da socialização, o que permite a tal comportamento - a tal gesto, se quiserem - uma função comunicacional específica no decurso do comportamento geral.



Quando estão em presença um do outro, os indivíduos estão admiravelmente colocados para partilharem um centro de atenção comum, para perceberem que o fazem, para perceberem esta percepção. Isto, em conjunto com a sua capacidade para indicar os seus próprios movimentos de acção física e para transmitir rapidamente as suas reacções às indicações provenientes do outro, fornece a condição básica para qualquer coisa de essencial: a coordenação estreita e continuada da acção, quer seja ao serviço de tarefas ou como meio de favorecer tarefas estreitamente próximas. A palavra acresce muitíssimo a eficácia de uma tal coordenação, sendo especialmente crítica, quando alguma coisa não corre conforme o indicado ou previsto. (É sabido que a palavra tem um outro papel especial, permitindo trazer, no processo de colaboração, elementos colocados fora da situação, do mesmo modo que permite negociar projectos a propósito de assuntos que é preciso tratar para além da situação em questão, mas isto é um outro problema terrivelmente complexo.)



Outra coisa: a caracterização que um indivíduo pode fazer de um outro, devido à sua capacidade para observar e para entender directamente, está organizada em duas formas fundamentais de identificação: a forma categorial que implica colocar o outro numa ou várias categorias sociais, e a forma individual pela qual o indivíduo observado é associado a uma identidade única e distinta através da aparência, do tom de voz, da menção do nome ou de outros dispositivos diferenciadores da pessoa. Esta dupla possibilidade - identificação categorial e individual - é essencial para a vida interaccional em todas as comunidades, excepto nos pequenos grupos isolados dos tempos antigos e, de facto, encontramo-la, igualmente, na vida social de outras espécies.



Goffman, Erving, A ordem da interacção, discurso à American Sociological Association (não apresentado oralmente, por doença), 1982.

sábado, 10 de outubro de 2009

Indução

Retirado de http://www.drdelmath.com/college_algebra/image/math_induction_statement.gif

Em termos algébricos, a demonstração por indução matemática é geralmente aceite pelos respectivos especialistas (tanto quanto sei, eu que não sou matemático - perdoe-se-me a indução). Assim, para o caso dos números naturais, desde que i) se possa verificar que o teorema ou fórmula em análise são válidos para um determinado número natural, n, ou qualquer outro; e ii) se admita que o teorema ou fórmula são válidos para n=p e prove que também são válidos para n=p+1; podemos concluir que o teorema ou a fórmula são válidos para os números naturais não inferiores ao n inicial. Como garantir algo tão simples e tão eficaz numa ciência empírica e, nomeadamente, numa ciência social? O valor da indução parece aqui ser mais da ordem da presunção que da demonstração.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Audácias

Tenho como recente projecto pessoal (entre outros) aprofundar e esclarecer as possíveis relações entre a tematização filosófica realizada pelo grande filósofo, português, Fernando Gil na sua obra Tratado da evidência e a denominada sociologia pragmática. Na verdade, parece-me de singular relevância a análise das continuidades e descontinuidades entre a evidência e a prova, assim como entre o domínio da protodoxa, continente da evidência antepredicativa, que se obtém aquém da identidade lógica e mergulha, nas suas articulações, até aos rizomas biognoseológicos que fundam as dimensões arcaicas da evidência e do respectivo desejo, apreensível na sua modalidade mas também no contentamento com o evidente - entre esse vasto domínio e o domínio da evidência predicativa, obtida num regime conceptual do julgamento. Penso que é possível, a partir deste projecto, trazer o elevadíssimo nível da discussão filosófica empreendida por Fernando Gil à análise e intervenção sobre as dimensões aparentemente mais prosaicas da vida quotidiana. O empreendimento é muito grande e arriscado, mas sem dúvida compensador. Espero não me perder no caminho.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Matemáticas e autonomia científica


http://educarparacrescer.abril.com.br/imagens/aprendizagem/pierre-bourdieu.jpg

L'autonomie, dans [le champ scientifique] comme dans tous les autres, a été conquise peu à peu. Commencée avec Copernic, la révolution scientifique s'est terminée, selon Joseph Ben-David, par lá création de la Royal Society à Londres (...). Parmi les facteurs de ce processus, un des plus importants, qui a été évoqué par Kuhn dans un des textes réunis dans La Tension essentielle, «Mathematical versus experimental tradition», est la mathématisation. Et Yves Gingras, dans un article intitulé «Mathématisation et exclusion, socioanalyse de la formation des cités savantes», montre que la mathématisation est à l'origine de plusieres phénomènes convergents qui tous tendent à renforcer l'autonomie du monde scientifique et en particulier da la physique (il n'est pas certain que ce phénomène exerce partout et toujours les mêmes effets, en particulier dans les sciences sociales).

La mathématisation produit d'abord un effet d'exclusion hors du champ de discussion (...): avec Newton (j'ajouterais Leibniz) la mathématisation de la physique tend peu à peu, à partir du milieu du XVIII siècle, à instaurer une très forte coupure sociale entre les professionnels et les amateurs, à séparer les insiders et les outsiders; la maîtrise des mathématiques (qui est acquise au moment de la formation) devient le droit d'entrée et réduit le nombre non seulement des lecteurs mais aussi des producteurs potentiels (...). C'est ainsi que Faraday subit l'effet d'exclusion des mathématiques de Maxwell. La coupure implique la fermeture, qui produit la censure. Chacun des chercheurs engagés dans le champ est soumis au contrôle de tous les autres, et en particulier de ses concurrents les plus compétents, avec pour conséquence un contrôle autrement puissante que les seules vertus individuelles ou toutes les déontologies.

Deuxième conséquence de la mathématisation, la transformation de l'idée d'explication. C'est en calculant que le physicien explique le monde, qu'il engendre les explications qu'il lui faut ensuite confronter par l'expérimentation avec les choses prévues telles que le dispositif expérimental permet de les saisir. Si Kuhn avait construit son modèle de la révolution en s'appuyant non, comme il l'a fait, sur le cas de la révolution copernicienne, mais sur le cas de la révolution newtonienne, il aurait vu que Newton a été le premier à fournir des explications mathématiques qui impliquaient un changement de théorie physique: sans prendre nécessairemente position sur l'ontologie correspondante (évidemment, on peut parler d'action à distance, etc.), il substituait une explication mathématique à l'explication par le contact mécanique (comme chez Descartes ou chez Leibniz), ce qui implique une redéfinition de la physique.

Ceci entraîne un troisième effet de la mathématisation, ce qu'on peut appeler la désubstantialisation, en suivant les analyses de Cassirer de Substance et Fonction, auquel se réfère aussi Gingras: la science moderne substitue les relations fonctionnelles, les structures, aux substances aristotéliciennes et c'est la logique de la manipulation des symboles qui guide les mains du physicien vers des conduites nécessaires. L'usage de formulations mathématiques abstraites affaiblit la tendance à concevoir la matière en termes substantiels et conduit même à mettre l'accent sur les aspects relationnels. (...) Le calcul de probabilités permet de fournir des prévisions à propos de mesures ultérieures à partir des résultats de mesures initiales. (...) L'épistémologie n'a pas à prendre position sur la réalité du monde; elle se contente de prendre position sur la prédictibilité des mesures que rend possible la mise en oeuvre du calcul des probabilités s'appuyant sur des mesures passées.

Pierre Bourdieu, Science de la science et réflexivité

segunda-feira, 20 de julho de 2009

Hannah Arendt




Hannah Arendt foi uma notável pensadora social e política. Uma das razões pelas quais me sinto particularmente atraído pelo seu pensamento, nos termos legados em livro, é o seu carácter profundamente surpreendente e inovador. Um exemplo claro desta qualidade é a distinção entre labor, trabalho e acção realizada pela autora na sua obra A condição humana. Não vou discutir aqui e agora estas noções, mas é de facto entusiasmante acompanhar - estando-se ou não em acordo total com as suas teses - a forma como a autora questiona, a partir de conceitos como estes, aspectos tão fundamentais e cruciais do pensamento social, económico e político moderno, como os atinentes ao conceito de trabalho, que problematiza incessantemente. E fá-lo, de forma tão brilhante quanto informada, a partir dos contributos exemplares da cultura clássica, na Grécia e em Roma.

Predomínios

Michael Walzer estabelece uma interessante teoria da justiça. Muito embora não possa aqui, dadas as evidentes limitações de espaço, encetar uma análise minimamente sistemática da mesma, gostaria de deixar explicitados alguns dos seus aspectos mais curiosos (em minha opinião).
Uma distinção fundamental aduzida por Walzer acontece entre os conceitos de monopólio e predomínio, ambos designando potenciais fontes de descontentamento e reivindicações de justica ou acusações de injustiça. O monopólio existe quando acontece uma apropriação ou, em todo o caso, quando se verifica a detenção largamente exclusiva de um determinado bem social ou conjunto de bens sociais por um homem, mulher, ou grupo. Já o predomínio refere-se à situação em que um determinado bem social é dominante por referência a todos os outros, permitindo assim aos seus detentores obter um conjunto de outros bens, através de uma conversão a partir do valor do primeiro.
Um exemplo claro de predomínio é o caso do dinheiro nas sociedades modernas. Com efeito, o dinheiro é, nas nossas sociedades, um bem predominante, na medida em que permite obter um conjunto muitíssimo alargado de outros bens, constituindo-se em medida de equivalência (no caso, permitindo formar preços, no sentido literal do termo) e padrão de conversão desses mesmos bens. Assim, o significado social específico destes outros bens tende a diluir-se por referência à predominância do dinheiro.
Parece-me que, para Walzer, a questão do predomínio é a principal questão que deverá ser discutida numa teoria da justiça, mais mesmo do que a questão do monopólio. Porque, mesmo existindo monopólios, não existindo predomínio acentuado de uns bens sobre outros, o alcance desses monopólios é limitado e, em princípio, mais aceitável. Uma situação, segundo Walzer desejável, de não existência de predomínio é uma situação de igualdade complexa, em que o pluralismo dos diferentes significados sociais atribuídos e atribuíveis a diferentes bens está assegurado e, assim, existem espaços de autonomia e de reconhecimento social diferenciado e diferenciador.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

Individuações


De acordo com Danilo Martuccelli, aquela que talvez seja a figuração dominante do indivíduo humano no Ocidente – e isto ao longo de séculos e épocas diversas -, é aquela que o representa como mestre e senhor de si mesmo. A ideia de um indivíduo autónomo, independente, capaz do controlo de si mesmo e de uma expressividade própria indica, segundo Martuccelli, a presença de uma figura que, sendo identificável noutras épocas e contextos, assume preponderância e centralidade no seio da modernidade, nas suas múltiplas expressões nacionais, de classe, políticas, etc. Em comum às diversas expressões por ela assumidas, porém, pode identificar-se esse grande traço caracterizador, dominante na época moderna, que é o da figuração do indivíduo capaz de se manter do interior.
Esta capacidade de manutenção do interior consubstancia-se em quatro diferentes dimensões ideais dos indivíduos, no seio de um projecto de modernidade, mas também de uma modernidade fortemente realizada. São estas quatro dimensões que, segundo o autor, melhor firmam uma visão da passagem de uma figuração não moderna dos indivíduos para uma sua figuração propriamente moderna.
Estas dimensões, venho de referi-las indirectamente. Desde logo, existe a autonomia, ou seja, a competência para se fixar as próprias orientações da sua acção. Em segundo lugar, a independência, nomeadamente face a laços mais exactamente comunitários, como muito precisamente atesta a passagem, para retomar a terminologia de Ferdinand Tönnies, da comunidade à sociedade, ou ainda, na terminologia weberiana, de uma modalidade de constituição do laço social comunitária a uma modalidade societária. Os processos históricos que promovem a realização desta transição estão bem documentados em diversas obras, mas uma sua interessante expressão, pensamos, é dada por Émile Durkheim através da sua célebre distinção evolutiva entre uma solidariedade mecânica e uma solidariedade orgânica. Esta dimensão leva-nos directamente à terceira. O indivíduo capaz de se situar no seio do emaranhado relacional típico de sociedades crescentemente diferenciadas, por exemplo do ponto de vista da respectiva divisão social do trabalho, de uma forma racional, controlada, calculadora e funcional por referência àquilo que são os seus interesses, autonomamente definidos e independentemente prosseguidos é um indivíduo capaz de um forte autocontrolo pessoal. A terceira dimensão que Martuccelli indica é, pois esta: a capacidade de autocontrolo. Como é consabido, foi Norbert Elias quem melhor, mais profunda e sistematicamente explicou este processo, que implica um forte auto-controlo sobre as pulsões e os afectos, consubstanciado na emergência de uma nova sensibilidade, civilizada e justamente promotora da passagem das sociedades humanas, nas modalidades de vida psíquica que as suas cadeias e constelações de interdependências configuram, a um novo equilíbrio nas relações “nós-eu” – para retomar a parelha analítica avançada pelo sociólogo alemão. A leitura de Elias não deixa, aliás, qualquer dúvida a este respeito: o autocontrolo dos afectos e das pulsões específico do processo de civilização dos costumes que o autor brilhantemente identifica no seio da dinâmica das sociedades ocidentais é condição de possibilidade da própria modernidade.
A quarta dimensão que Martuccelli identifica, refere-se à expressividade. Expressividade, no sentido romântico, isto é, que remete para uma ideia de autenticidade original que o indivíduo transporta consigo, espécie de conjunto de atributos essenciais que o definem desde o seu estado mais germinal e que lhe cumpre realizar em pleno, através de um processo de crescimento que é também um processo - precisamente - expressivo. Expressão de uma singularidade e de uma autenticidade que são o signo da unicidade do eu, portanto.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

Matemática do perdão

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É estranho, o título. Mas é o exacto equivalente do título de um texto que aqui deixo, para quem estiver interessado em consultar. Tem que ver o texto, justamente, com a construção de experiências que permitam traduzir matematicamente o "esquema do perdão". Controverso, mas interessante.


quarta-feira, 22 de abril de 2009

Escrita sociológica

Imagem retirada de: http://www.artsmarttalk.com/images/early%2020th%20c/12.18-paulKlee-RedBalloon.jpg


Defendendo a necessidade de uma escrita complexa, dada a complexidade dos objectos que (d)enuncia, Pierre Bourdieu foi um autor sem dúvida extraordinariamente consistente, um cientista duro no seu rigor. Deixou-nos pérolas dificilmente decifráveis, sobretudo para quem esteja mal familiarizado com a sua teoria (o que é sempre expectável), como aquela que exponho abaixo.
Já agora e para os especialistas e amadores informados, é interessante a comparação com a mensagem anterior, sobre o realismo formalista. Consegue-se a explicitação do formalismo - nomeadamente na sua forma realista, ou seja, tendente a fazer-se crer modelo "literal" da realidade - enquanto discurso ideológico.

«O círculo institucionalizado do desconhecimento colectivo que funda a crença no valor de um discurso ideológico só se instaura quando a estrutura do campo de produção e de circulação desse discurso é tal que a denegação que opera dizendo apenas o que diz sob uma forma tendente a mostrar que ele não o diz, encontra intépretes capazes de re-desconhecer o conteúdo que ele denega; enquanto que aquilo que a forma nega é re-desconhecido, ou seja, conhecido e reconhecido na forma, e apenas na forma onde ele se cumpre, negando-se. Em suma, um discurso de denegação pede uma leitura formal (ou formalista) que reconhece e reproduz a denegação inicial, em vez de a negar para descobrir aquilo que nega. A violência simbólica que encerra todo o discurso ideológico enquanto desconhecimento requerendo o re-desconhecimento só se exerce na medida em que consegue obter dos seus destinatários que o tratem como ele pede para ser tratado, quer dizer, com todo o respeito que ele merece, nas formas, enquanto forma. Uma produção ideológica é tanto mais conseguida quanto mais capaz de desacreditar quem quer que tente reduzi-la à sua verdade objectiva: o próprio da ideologia dominante é estar na posição de fazer cair a ciência da ideologia sob a acusação de ideologia; a enunciação da verdade escondida do discurso escandaliza porque diz o que seria "a última coisa a dizer"», Pierre Bourdieu, em O que falar quer dizer.

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Realismo formalista

Imagem retirada de: http://1203africa.blogspot.com/

Pierre Bourdieu, talvez o principal responsável pela introdução, na teoria sociológica mas também antropológica, de uma ruptura com o modo de pensamento estruturalista devedor da obra de Claude Lévi-Strauss, não se cansava de repetir a importância da necessidade de não confundirmos, na análise, o modelo da realidade com a realidade do modelo. O deslizar do primeiro para o segundo dos termos desta inequação constitui, sem dúvida, uma armadilha realista, pela qual podemos, por exemplo, imaginar, no limite, perguntas como aquela que Unamuno (com alguma ironia) fazia num dos seus livros, questionando se um caranguejo resolvia equações de segundo grau. O modo de pensamento estruturalista abstraía das observações concretas para, uma vez estabelecida uma "lei" de grande generalidade, a situar no inconsciente dos observados, convertido assim em ens realissimum, realidade primacial da qual brotam todas as outras. Invariantes formais nas variações materiais, inconsciente, explicação científica. Como resistir a uma fórmula cientificamente tão sedutora? Bourdieu explica-o e é uma das suas grandezas. Talvez não nos devamos esquecer disto quando muitos, hoje, tentam "ultrapassar" Bourdieu. Não que o autor esteja certo em tudo, mas muito do que nos legou faz e fará sempre sentido.

Entretanto, deixemos exposto um excerto do impressionante Anthropologie structurale de Lévi-Strauss:

"La zoologie scientifique n'a (...) pous objet la description des formes animales, telles qu'elles sont intuitivement perçues; il s'agit surtout de définir des relations abstraites mais constantes, où paraît l'aspect intelligible du phénomène étudié. § J'ai appliqué une méthode analogue à l'étude de l'organisation sociale, et surtout des règles du mariage et des systèmes de parenté. Ainsi a-t-il été possible d'établir que l'ensemble des règles de mariage observables dans les sociétés humaines ne doivent pas être classées - comme on le fait généralement - en catégories hétérogènes et diversement intitulées: prohibition de l'inceste, types de mariage préférentiels, etc. Elles représentent toutes autant de façons d'assurer la circulation des femmes au sein du groupe social, c'est-à-dire de remplacer un système de relations consanguines, d'origine biologique, par un système sociologique d'alliance. Cette hypothèse de travail une fois formulée, on n'aurait plus qu'à entreprendre l'étude mathématique de tous les types d'echange concevables entre n partenaires pour en déduire les règles de mariage à l'oeuvre dans les sociétés existantes. Du même coup, on en découvrirait d'autres, correspondant à des sociétés possibles. Enfin on comprendrait leur fonction, leur mode d'opération, et la relation entre des formes différentes". (in Lévi-Strauss, C. (1958), Anthropologie structurale, Paris, Plon, 1974, p.75)

quinta-feira, 19 de março de 2009

Le nourrisson savant

Não defendo a psicanálise. Mais próprio seria dizer que tenho sobre este quadro interpretativo dos mecanismos psicológicos humanos uma postura crítica. Não obstante, além da importância inquestionável da procura de conhecimento sobre ópticas científicas diferentes das que perfilhamos, acrescento que a tradição epistemológica na qual me revejo reconhece a existência de uma multiplicidade de sistemas interpretativos da(s) realidade(s) e, por outro lado, remete para uma postura pragmática perante os mesmos: uma qualquer teoria pode, em dado momento, conter em si a melhor possibilidade de explicação disponível para um dado fenómeno. Dito isto, estava a ler um livro escrito por um psicanalista e encontrei nele descrito o interessante fenómeno onírico da criança sábia. Segundo o autor, vários são os casos, registados pela clínica psicanalítica, de indivíduos que produzem um sonho característico, em que uma criança de tenra idade se exprime com a gravidade e a profundidade intelectual de um sábio. De acordo com a psicanálise mais actual, tal sonho é a expressão - o sintoma, na linguagem psicanalítica - de um conflito intrapsíquico ocorrido durante a infância - o que é modal na interpretação psicanalítica -, caracterizado por aquilo a que os autores chamam de um "terrorismo do adulto", que impõe à criança, sobretudo através da linguagem, um sistema de representação do mundo que subaproveita as suas capacidades mentais. Por exemplo, impondo um realismo forte que amputa a dinâmica do imaginário. Segundo muitos psicanalistas, a continuação deste processo redunda na tendência para um hiperconformismo face a regras no posterior adulto. Que se vinga na ironia onírica desta representação inverosímil.

Escalas, fenómenos, decisões e confusões perceptivas

Há dias, deambulava pelo site da Fundação para a Ciência e Tecnologia e deparei-me com uma interessante citação de Hermann Muller (antigo Nobel da Medicina), que passo a transcrever. É para mim tanto mais interessante quanto é o exacto paralelo de uma outra frase que citei há dias, neste blogue, esta outra escrita por Mircea Eliade. Reza assim: "To say that a man is made up of certain chemical elements is a satisfactory description only for those who intend to use him as a fertilizer".

quinta-feira, 12 de março de 2009

Transcendente II (anexo)


«Mostraste-te, Senhor, a mim dum modo tão amável que não podes ser mais amável. Com efeito, és infinitamente amável, Deus meu. Por isso jamais poderias ser amado por alguém como és digno de ser amado, a não ser por quem te ame infinitamente. E não serias infinitamente digno de ser amado, se não amasses infinitamente. Efectivamente, a tua amabilidade, que é o poder ser infinitamente amado, deve-se ao facto de ser simultaneamente o poder amar infinitamente. Do poder amar infinitamente e do poder ser infinitamente amado provêm o nexo infinito do amor entre o amante infinito e o infinito amável. O infinito não é multiplicável.


Por isso, tu, Deus, meu, que és o amor, és amor amável e nexo do amor amante e do amor amável. Vejo em ti, Deus meu, o amor amante e o amor amável e, por isso, porque vejo em ti o amor amante e o amor amável, vejo o nexo de um e de outro amor. E isto não é senão o que vejo na tua absoluta unidade, na qual vejo a unidade que une, a unidade unível e a união de ambas. Mas seja o que for que eu veja em ti, isso és tu, Deus meu. Por isso és o amor infinito que, sem o amante, o amável e o nexo de ambos, não pode ser visto por mim como amor perfeito e natural. Com efeito, como posso conceber o amor sumamente perfeito e natural sem o amável e a união de ambos? No amor contraído experiencio que o facto de o amor ser o amante, o amável e a união de ambos deriva da essência do amor perfeito. Mas aquilo que pertence à essência do amor perfeito contraído não pode faltar ao amor absoluto do qual o amor contraído recebe o que de perfeição comporta»


Nicolau de Cusa, De Visione Dei, Capítulo XVII

Transcendente I (anexo)

Imagem extraída de: http://www.sim1.se/bilder/IMG_8708_blue_Sky2.jpg

«Pois bem: quanto se ama o conhecer e como repugna à natureza humana ser enganada, pode concluir-se do facto de que ninguém há que não prefira afligir-se em são juízo a alegrar-se na demência. Esta grande e admirável força não se encontra, fora do homem, em qualquer animal destinado à morte. É certo que alguns, para contemplarem a nossa luz, têm o sentido da vista mais agudo que o nosso; mas não podem atingir aquela luz incorpórea que na nossa mente brilha de certo modo para que possamos emitir acerca de todas as coisas um juízo correcto; porque é na medida em que a possuímos que desse juízo somos capazes. Todavia, se não há ciência nas sensações dos animais privados de razão, há neles, porém, pelo menos uma certa semelhança de ciência. Os outros seres corpóreos chamam-se sensíveis, não porque sintam mas porque são sentidos. Entre eles os vegetais imitam a sensibilidade pelo acto de se nutrirem e se reproduzirem. Todavia, estes e todos os seres corporais têm na natureza as suas causas latentes. Quanto às suas formas, que embelezam a estrutura deste mundo visível, eles apresentam-nas aos nossos sentidos para serem percebidas, parece que como se quisessem dar-se a conhecer para compensarem o conhecimento que não têm. Nós captamo-los com os sentidos do corpo, mas não é com esses sentidos do corpo que os julgamos. Com efeito, um outro sentido do homem interior, muito superior aos outros, permite-nos sentir não só o justo, mas também o injusto: - o justo pela sua beleza inteligível, o injusto pela privação dessa beleza. Para o exercício deste sentido não chega nem a agudeza da pupila, nem a abertura dos ouvidos, nem os respiradouros do nariz, nem a abóbada do palatino, nem tacto algum corpóreo. É nesse sentido que encontro a carteza de que existo e de que conheço; é nesse sentido que encontro a certeza de que amo isso tudo e de que amo».


Santo Agostinho (Agostinho de Hipona), De Civitate Dei, Livro XI, Capítulo XXVII

Re-ligar

Imagem extraída de: http://portodaspipas.blogs.sapo.pt/arquivo/Sky.jpg
Mircea Eliade foi, sem dúvida, um profundo e extremamente erudito historiador das religiões -tristemente conhecido, também, pela sua simpatia pelos regimes ditatoriais. Não obstante esta sua derivação ideológica, o seu trabalho intelectual é digno de particular nota. Como presentemente sou mobilizado por certos aspectos, dir-se-ia fenomenológicos, da interpretação da actividade humana, estou tentado a voltar a pegar nos "velhos" livros sobre religião. Já darei nota do porquê. Antes, uma citação de Eliade, na abertura do seu enciclopédico Tratado de história das religiões: «A ciência moderna reabilitou um princípio que certas confusões do século XIX comprometeram gravemente: é a escala que cria o fenómeno. Henri Poincaré perguntava a si próprio, com ironia: "um naturalista que só tivesse estudado um elefante ao microscópio acreditará conhecer completamente este animal?" O microscópio revela a estrutura e o mecanismo das células, estrutura e mecanismo idênticos em todos os organismos pluricelulares. E não há dúvida de que o elefante é um animal pluricelular. Mas não será mais do que isso? À escala microscópica podemos conceber uma resposta hesitante. À escala visual humana, que tem pelo menos o mérito de nos apresentar o animal como fenómeno zoológico, não há hesitação possível. Da mesma maneira, um fenómeno religioso somente se revelará como tal com a condição de ser apreendido dentro da sua própria modalidade, isto é, de ser estudado à escala religiosa.»


Princípio metodológico a que estaremos atentos, portanto: o fenómeno religioso deve ser apreendido na sua modalidade própria. Pouco importa aqui e agora discutir se a apreensão da modalidade é uma questão de escala ou não, como aduz Eliade. Avancemos uma hipótese (surgida aqui sem dúvida com uma rapidez de todo estranha ao processo intelectual que a ela pode conduzir); antes disso porém, um pressuposto (resultante de uma longa tradição de pensamento nas ciências do homem): a modalidade própria do fenómeno religioso é a relação (do sujeito) com uma qualquer transcendência. Isto ainda é, talvez e no entanto, pouco específico. Mas, notemos: deste ponto de vista, o fenómeno religioso apresenta-se numa modalidade - é esta a hipótese - próxima, quando não (por vezes?) a mesma, do amor (leia-se por exemplo o post sobre agapè, neste blogue). Quer pela relação com o transcendente (um outro é sempre transcendente), quer - pelo menos em certos momentos mais ou menos "místicos" (peço desculpa pelo atabalhoamento da linguagem, mas há que dizer em poucos parágrafos coisas que fariam correr rios de tinta) - pela natureza de gratuitidade e entrega experienciadas (donde, distintas, também aqui, da magia), quer pela respectiva modulação afectiva.


Avançarei em seguida dois exemplos. Diferentes, muito embora situados numa mesma tradição e, ao mesmo tempo, unidos pela consciência aguda da centralidade do amor na relação com o transcendente, no caso, divino.


Disse que referiria o porquê desta retoma. Conversas, tidas aqui e ali, com grandes e bons amigos, de ontem, de hoje e seguramente do futuro.

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Agapè - um regime de amor




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Ocupa-me o espírito um regime de acção por demais esquecido. Esquecido por sob as trombetas avassaladoras e dissonantes da ideologia dominante, bastas vezes travestida de ciência, natural ou social. Falo do regime de acção que Luc Boltanski designa de regime de agapè. É um regime de paz, fora de equivalências. Contrariamente, por exemplo, a um regime de justiça, que pressupõe uma disputa por uma interpretação legítima, fundada em equivalências convencionais pelas quais se podem medir as pessoas, os objectos e as acções e em que existe uma expectativa de reciprocidade, aqui é o domínio da não reciprocidade, da não equivalência e da paz. É o regime pragmático da dádiva e do amor. Do desinteresse. Da incomensurabilidade. Quem está num regime de agapè dá(-se) sem expectativa de retribuição (mesmo simbólica); desde logo, porque o futuro, o porvir, não são medidos nem colocados sob o signo do cálculo, da expectativa de troca. Não necessita de justificação para (se) dar. Suspende a percepção do outro sob o modo convencional. Não o apreende como um caso particular do possível, um indivíduo pertencente a uma categoria, mas como um ser único, irrepetível, familiar. Não se exprime geralmente (por exemplo, através da língua, em que cada termo deixa sempre um resto por dizer ou fixar) sobre isso sem ferir a modalidade de acção em que se situa e mudar de regime de acção. É o regime do amor. O amor que, como tão bem sublinha Zygmunt Bauman, está hoje, as mais das vezes, esquecido ou perdido, reduzido a significante sem significado em torno de que se organizam discursos e narrativas de "especialistas sentimentais", que nos vão treinar a lidar com ele como se lida com um capital ou um investimento (analogia económica, claro está). Colocado sob a égide do investimento como do cálculo de risco associado a qualquer investimento, o amor definha, quando não esmorece e desaparece - ou chega a nunca surgir. Conforma-se a vítima com um discurso da National Geographic sobre macacos, antes do jornal das dez. Mas, verdade empírica: há quem ainda ame, há quem (se) dê sem expectativa de troca ou retribuição, há quem ainda não pense nas consequências futuras do que faz hoje no âmbito do seu amor, até porque o amor não estabelece equivalências com o futuro (é mais correcto talvez dizer que se espraia imaginariamente sobre ele). Há quem o faça, mesmo que a custo, intermitentemente e contra todo o resto de si próprio que diariamente é violentado pelos dispositivos ideológicos e sociais da opressão doce.

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Acção e quotidiano


Um excerto de um capítulo de um livro que escrevi com uma colega:

As social agents engage in everyday actions, they use reference points to determine the most convenient access mode to action and subsequent course of action. The different access modes, though dependent on the agent’s ability for recognizing them, are hard-coded into most daily situations, in the sense that they present an overwhelmingly integrated code of unequivocal meaning for socially integrated agents. As such, a socially competent agent should have the ability to recognize the code, as well as the determinants central to any situation, in order to select the appropriate demeanor and mode of action with only a very slight conscious or deliberate effort. Such codes and determinants display, in most cases, a posture belonging to the regime of plan (Thévenot) and organization (even on the street), be it in terms of their degree of codification or of internal determination (such as injunctions or logic and moral rules). This is the case of the major metropolitan areas of our time, urban realities whose central property lies in the recurring human motion streams between more or less distant points, usually classified as “center” and “periphery.”

We suggest that, in this case, the regime of plan through which the agents engage in their daily motions is often shaped by normative industrial mechanisms, in the sense that they incorporate the determinations of past historical actions which have contributed to the development of a cité in an industrialized world (Boltanski & Thévenot). Thus, in certain urban contexts, the groundwork of everyday life is based on injunctions etched on objects and made recognizable to people, who in turn adjust to each situation as they are steered towards an idea of good associated with symbolic operators such as efficiency, productivity or optimization. A valued space is one that propitiates the attainment of these operators.

As expressed by Bruno Latour, though not exactly in this context, we’re faced with a kind of symmetry between the world of humankind and the world of objects and technique, as this latter element of symmetry embodies what Latour calls “the mass that is missing,” just like the mass astrophysicists lack to accomplish their dream of calculating the total mass of the universe. Latour tells us that the “moral that is missing” on the speeches of the great and not so great moralists of our time lies right in front of our eyes, in the technical world. We can find it, for example, on the seat belt and its automatic systems of alert, which configure an entire moral mechanism as they originate from notions of safety, brought to existence by the engineers who designed and built the system, in order to make it clear to the driver that if she doesn’t put it on she’d be ignoring a concept of personal safety that a general other expects of her.

Taking this problematic further, we verify that, in many cases, an agent is the more competent in her daily life as she avoids questioning the meaning of the plan action activated on a daily basis (routine), and becomes incapable of recognizing objects as the product of human activity and historical moral choices. In this sense, when the agent thinks (abandoning the normalized state of daily automatisms), she finds in herself only a mechanical or logical need, not a moral need, leading to a naturalization of the human.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2009

Medicina e modernidade - breves aspectos

Imagem extraída de http://www.eriding.net/media/photos/history/tudor/medecine/080616_rfoster_mp_his_tudors_medecine_mediev_surgery.jpg




O desenvolvimento da medicina moderna está indissoluvelmente ligado aos progressos das ciências naturais e das tecnologias nelas baseadas. É com o desenvolvimento cumulativo do conhecimento científico-experimental e a sucessiva incorporação do mesmo na acção médica que a medicina começa a formar-se como profissão genuinamente moderna, especializada e socialmente justificada pela crescente eficácia dos seus actos. Um dos sustentáculos fundacionais da legitimidade social da profissão médica moderna, talvez mesmo o mais fundamental é, sem dúvida, a sua eficácia no diagnóstico, terapêutica e prevenção da doença, eficácia esta devedora dos avanços operados nas ciências naturais e experimentais que informam a acção médica, doravante crescentemente especializada.
A acumulação progressiva de conhecimentos oriundos das diversas ciências e a sua aplicação e utilização terapêutica confere, na realidade, uma eficácia inusitada à medicina moderna e contribui, por esta via, para a sua qualificação e engrandecimento numa ordem convencional de tipo industrial e concomitante diferenciação de outras modalidades de tratamentos da saúde e da doença, ancorados em práticas tradicionais ou esotéricas. A história da medicina regista este movimento, de autonomização progressiva de uma medicina racionalista e centrada nas possibilidades abertas pela ciência de entre as demais actividades plasmadas em torno da saúde e da doença. Como regista, igualmente, a importância que a eficácia relativa do trabalho médico face a outros registos e formas de trabalho sobre a saúde e a doença assumem nos processos de legitimação e engrandecimento de uma profissão e de uma acção organizada crescentemente relevante nas sociedades modernas.
Este é um aspecto fundamental da forma específica da legitimidade social da medicina moderna, sob uma dupla perspectiva. Em primeiro lugar, ele encontra-se, como referi, na origem histórica da autonomização da medicina face a outras formas de trabalho sobre a saúde e a doença e, paralelamente, de desvalorização social destas últimas. Este processo é um de verdadeira institucionalização da medicina enquanto actividade dominante no domínio da saúde e da doença no quadro da modernidade, no qual a progressiva legitimação desta actividade e sua integração no Estado moderno são absolutamente nucleares. Em segundo lugar, este aspecto é fundamental porque, como diversos autores têm observado, mesmo partindo de sistematizações teóricas e áreas disciplinares muito diferentes, a eficácia da medicina não mais deixou de funcionar como elemento-chave da sua legitimidade social, desde a sua entrada na modernidade até aos dias actuais.
É neste sentido que a medicina moderna, desde o seu início, se configura, até certo ponto, em associação com um mundo industrial (conceito de Boltanski e Thévenot, que não posso explicitar aqui), de tal modo que a grandeza específica do médico, a qual o diferencia dos demais praticantes das artes da saúde e da doença, se avalia pela sua competência técnica, derivada do conhecimento dos corpos, dos processos e procedimentos clínicos baseados nas aquisições das ciências e, correlativamente, pela eficácia terapêutica dos seus actos. Digo “toda a medicina moderna no seu início” porque, muito embora possamos observar a existência de uma multiplicidade de escolas, de abordagens, de modalidades de acção médica, estas ideias, de competência técnica e eficácia terapêutica do acto médico – o seu poder de curar, em suma – são, já o notei, centrais na construção da profissão e constituem o núcleo duro da justificação para a definição e a notoriedade socialmente positiva da profissão.
É difícil não notar neste quadro normativo, nesta ordem convencional industrial que acompanha a constituição da medicina moderna, a existência de um forte optimismo progressista ligado à medicina científica, eficaz e tecnicamente especializada, que tende a fazer ver a história como um campo de progresso permanente trazido pela ciência e pela sucessiva melhora da prática clínica nesta baseada. Com efeito, existe um projecto modernizador associado à prática médica de base científica, projecto este que tem como limites ideais objectivos de longa duração como a erradicação das doenças, a higienização da vida das populações ou, mais recentemente, a capacidade de controlar ao máximo o risco de contracção de futuras patologias, limite este que se estende hoje, aliás, para lá do nascimento individual e até ao material genético da potencial progenitura ou outra ascendência.
Esta medicina nova, moderna, apoiada nos processos, métodos e aquisições das ciências naturais e na respectiva transposição eficaz para o campo da clínica, demonstra a sua validade e alcance, desde logo, pelas grandes descobertas feitas no campo da saúde pelos médicos e homens de ciência. Caso dos avanços na anatomia e, ulteriormente, da bacteriologia. A autonomização da medicina enquanto domínio específico de actividade profissional apenas se impõe a partir do momento em que a mesma se torna crescentemente, cumulativamente, eficaz, em função da sua progressiva cientifização e da aplicação de métodos e processos de base científica na actividade clínica. Num plano de concorrência histórica com outras modalidades terapêuticas, estas últimas de base “empirista” e tradicional, terá sido este o factor determinante para o desenvolvimento bem sucedido da acção médica no corpo social, algo que não se verificava anteriormente.
Esta é uma transição dos saberes e fazeres tradicionais, próprios de uma sociedade pré-moderna, sustentados socialmente em justificações mais ou menos esotéricas e de cunho não industrial, para um conjunto de saberes e actividades profissionais modernas, estreitamente dependentes da investigação científica, referenciados a uma ordem convencional industrial centrada na competência, ordem da qual constituem parte destacada e que contribuem igualmente para moldar.
Tal transição dá-se através da passagem de uma medicina centrada apenas no alívio sintomático, a uma medicina centrada na eficácia curativa do acto médico. Por outras palavras, ela envolve um progressivo distanciamento do acto de cuidar do núcleo central das preocupações dos novos representantes das actividades de saúde socialmente – e legalmente – legítimas e uma organização de todo o dispositivo de construção social da clínica moderna como orientada sobretudo para a cura e prevenção da doença. Tubiana diz-nos que

Antes do nascimento da medicina moderna, no século XIX, a assistência médica era unicamente sintomática. Podia-se reduzir a dor, facilitar a vida, apoiar moralmente o doente, mas só raramente se prolongava a existência.
(…) [P]ara que a medicina moderna nascesse, [era preciso] encontrar a sua metodologia própria. Foi alcançada no início do século XIX, a partir do estudo anatómico dos doentes e depois, a partir dos meados do século XIX, graças à biologia
[1].

Esta autonomização do domínio do saber médico e sua concomitante legitimação social ligada a uma ordem convencional industrial, ambos processos escorados num domínio crescente dos processos orgânicos e suas afecções derivado do conhecimento científico, é algo que se encontra exemplarmente sintetizado numa carta de D. Pedro V de Portugal, Protector da Sociedade das Ciências Médicas, dirigida ao Marquês de Saldanha, em 19 de Fevereiro de 1859[2]. Nesta missiva, é ainda patente o entendimento do monarca acerca do dever do Estado de chamar a si a defesa de uma medicina moderna, como forma fundamental de civilização – por oposição a barbárie –, perspectiva evolucionista que fundamenta boa parte daquilo que será um compromisso entre uma ordem industrial e uma ordem cívica (sob o patrocínio público do Estado), o qual caracterizará futuramente a medicina nos países em modernização.

A minha dúvida, é a dúvida sistemática de Descartes, e a filosofia experimental de Bacon, é o caminho que as ciências naturais seguiram para progredir, e o que elas abandonam para se charlatanizarem. (…) Nas ciências naturais não é absurdo senão aquilo que a experiência não consegue confirmar. Em umas, a experiência é uma coisa inocente, na Medicina, é uma coisa muito séria. Perdoe-me o Duque que eu não proclame o livre arbítrio em Medicina. (…) A liberdade da profissão da Medicina, seria um retrocesso para a barbárie, que eu não me encontro muito disposto a promover. Considero um dos triunfos mais gloriosos da humanidade sobre si mesma, a criação das profissões, e a possibilidade do estabelecimento de leis, que regulem o exercício delas.

A importância civilizadora da medicina e a sua distinção face a outras modalidades de trabalho sobre a saúde torna-se, um pouco por todos os países em processo de modernização, uma preocupação assaz difundida e fortemente assumida pelo poder público. Neste enquadramento, as medicinas paralelas são vistas, como sugere a carta de D. Pedro V, como “charlatanice”. Tal orientação modernizadora e civilizadora, assente numa medicina construída a partir dos saberes científicos modernos, torna-se expressão característica do surgimento e aprofundamento, nas sociedades em processo de modernização, de um compromisso entre uma ordem convencional cívica e uma ordem convencional industrial.


[1] Cfr. Tubiana (1995), História da medicina e do pensamento médico, Lisboa, Teorema, p. 306.
[2] Citada por Leitão (1985), Importância da história da medicina no exercício da profissão, Jornal da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa, Tomo CXLIX, pp. 5-6.