Tudo indica que uma das tensões mais fortemente geradoras de controvérsias internas à profissão médica, nomeadamente no plano da relação entre médicos e doentes, no decurso da própria história da medicina, é organizada em função de diferentes registos de constituição e diferentes formas de representar o laço social que configura essa mesma relação.
Com efeito, o conflito entre uma racionalidade médica objectiva e distanciada e o subjectivismo e particularismo dos problemas, angústias e queixas dos doentes parece recobrir diferentes formas de avaliar e coordenar as acções e, por esta via, a constituição do laço social com os doentes, por parte dos médicos. Existe assim, um espaço de oscilação entre uma representação e exigência de coordenação mais associativa, funcional e racional deste laço e uma representação e exigência de coordenação mais comunitária, integrativa e emocional do mesmo.
A tensão entre a objectividade do olhar e acção médicos e a subjectividade do paciente é, em rigor, uma tensão central no próprio desenvolvimento histórico da medicina. Ao ponto de, muitas vezes, implicar praticamente a diluição da subjectividade relacional de ambos para dar lugar a uma relação racionalizada e centrada mais na doença que no doente. Como bem demonstra Roselyne Rey (Rey, 2000), a propósito da temática da dor no quadro do desenvolvimento do saber e da acção médicos, a medicina constituiu-se historicamente muito a partir do relegar da subjectividade do doente para um plano de inferioridade, quando não de total exclusão, face ao olhar objectivo do médico:
[La logique] qui s’occupe de la maladie plus que du malade, qui se détourne des séquelles de la maladie (cicatrices douloureuses, conséquences secondaires des traitements, douleurs post-opératoires), est renforcée avec les succès de la médecine. Elle repose sur un point de vue optimiste sur les pouvoirs et les ambitions de la médecine, et la relégation de la douleur à un rang modeste ou négligeable est comme la rançon ou l’envers de cet optimisme. Cette situation définit aussi un certain type de relations entre le médecin et le malade, elle souligne l’absence du malade comme sujet, l’aliénation de sa parole et de son vouloir.
As condições históricas de surgimento de um tal olhar médico, frio, racional, linear e centrado numa recusa da proximidade face à subjectividade do doente encontram em Michel Foucault (Foucault, 2007) um interessante intérprete. Reportando-se ao nascimento da clínica moderna, este autor afirma que ela repousa, em boa medida, justamente naquela reconversão do olhar (e concomitantemente da relação com o paciente):
La médecine moderne a fixé d’elle-même sa date de naissance vers les dernières années du XVIIIe siècle. Quand elle se prend à réfléchir sur elle-même, elle identifie l’origine de sa positivité à un retour, par-delà toute théorie, à la modestie efficace du perçu. En fait, cet empirisme présumé repose non sur une redécouverte des valeurs absolues du visible, non sur l’abandon résolu des systèmes et de leurs chimères, mais sur une réorganisation de cet espace manifeste et secret qui fut ouvert lorsqu’un regard millénaire c’est arrêté sur la souffrance des hommes. Le rajeunissement de la perception médicale, l’illumination vive des couleurs et des choses sous le regard des premiers cliniciens n’est pourtant pas un mythe ; au début du XIXe siècle, les médecins ont décrit ce qui, pendant des siècles, était resté au-dessous du seuil du visible et de l’énonçable (…). Les formes de la rationalité médicale s’enfoncent dans l’épaisseur merveilleuse de la perception, en offrant comme visage premier de la vérité le grain des choses, leur couleur, leurs taches, leur dureté, leur adhérence. L’espace de l’expérience semble s’identifier au domaine du regard attentif, de cette vigilance empirique ouverte à l’évidence des seuls contenus visibles. L’œil devient le dépositaire et la source de la clarté ; il a pouvoir de faire venir au jour une vérité qu’il ne reçoit que dans la mesure où il lui a donné le jour ; en s’ouvrant, il ouvre le vrai d’une ouverture première (…).
Igualmente Foucault sugere, por outro lado, que este processo de racionalização, associado ao surgimento da prática clínica em condições de modernidade, exige uma forma específica de relacionamento, racionalizado também ele, mas assimétrico:
L’expérience clinique (…) a vite été prise pour un affrontement simple, sans concept, d’un regard et d’un visage, d’un coup d’œil et d’un corps muet, sorte de contact préalable à tout discours et libre des embarras du langage, par quoi deux individus vivants sont «encagés» dans une situation commune mais non réciproque (Foucault, op.cit.).
Este olhar reconvertido, moderno, asséptico e higienista, capaz de encarar a doença como fenómeno empírico e sobretudo, de olhar o doente de uma forma hiper-racionalizada e fundada numa perspectiva fisiológica, é um olhar a que Georges Canguilhem dedicou o seu estudo. Este autor consegue identificar uma contradição fundamental na aparente assepsia deste olhar fisiologista, do ponto de vista da própria ideia de medicina. Sobretudo, naquilo que tal olhar envolve de esquecimento da condição subjectiva do doente e da patologia e do doente como fundamentos primeiros do estudo da fisiologia e até mesmo de qualquer ideia de doença. Realizando um roteiro crítico pela história da clínica, Canguilhem (Canguilhem, 2007) sente-se autorizado a dizer que
Tout concept empirique de maladie conserve un rapport au concept axiologique de la maladie. Ce n’est pas, par conséquent, une méthode objective que fait qualifier de pathologique un phénomène biologique considéré. C’est toujours la relation à l’individu malade, par intermédiaire de la clinique, qui justifie la qualification de pathologique. Tout en admettant l’importance des méthodes objectives d’observation et d’analyse dans la pathologie, il ne semble pas possible qu’on puisse parler, en toute correction logique, de «pathologie objective». Certes une pathologie peut être méthodique, critique, expérimentalement armée. Elle peut être dit objective, par référence au médecin qui la pratique. Mais l’intention du pathologiste ne fait pas que son objet soit une matière vidée de subjectivité.
Nos termos deste seu roteiro crítico, burilado a partir da sua dupla formação, em filosofia e em medicina, Canguilhem faz o seguinte diagnóstico:
(…) il y a (…) un oubli professionnel – peut-être susceptible d’explication par la théorie freudienne des lapsus et actes manqués – qui doit être relevé. Le médecin a tendance à oublier que ce sont les malades qui appellent le médecin. Le physiologiste a tendance à oublier qu’une médecine clinique et thérapeutique, point toujours tellement absurde qu’on voudrait dire, a précédé la physiologie (Cfr. op.cit.).
Independentemente do reconhecimento do carácter normativo que a medicina não pode, segundo Canguilhem, deixar de ter, o que importa uma vez mais reter é, precisamente, o confronto entre uma medicina racionalista, societária e cujas exigências de coordenação ao nível da constituição do laço social com o doente relegam para segundo plano a sua subjectividade e uma medicina mais centrada no doente, que reserva um lugar a este, para lá da eficácia industrial (Boltanski e Thévenot, 1991; Resende, 2003) dos seus próprios dispositivos terapêuticos e técnicos. É justamente sobre este ponto crítico e revelador que se estabelece o difícil e complexo processo de construção ideológica de um domínio de intervenção médica novo: os cuidados paliativos, que estudo presentemente, em Portugal e na sua articulação com a medicina oncológica.
Com efeito, o conflito entre uma racionalidade médica objectiva e distanciada e o subjectivismo e particularismo dos problemas, angústias e queixas dos doentes parece recobrir diferentes formas de avaliar e coordenar as acções e, por esta via, a constituição do laço social com os doentes, por parte dos médicos. Existe assim, um espaço de oscilação entre uma representação e exigência de coordenação mais associativa, funcional e racional deste laço e uma representação e exigência de coordenação mais comunitária, integrativa e emocional do mesmo.
A tensão entre a objectividade do olhar e acção médicos e a subjectividade do paciente é, em rigor, uma tensão central no próprio desenvolvimento histórico da medicina. Ao ponto de, muitas vezes, implicar praticamente a diluição da subjectividade relacional de ambos para dar lugar a uma relação racionalizada e centrada mais na doença que no doente. Como bem demonstra Roselyne Rey (Rey, 2000), a propósito da temática da dor no quadro do desenvolvimento do saber e da acção médicos, a medicina constituiu-se historicamente muito a partir do relegar da subjectividade do doente para um plano de inferioridade, quando não de total exclusão, face ao olhar objectivo do médico:
[La logique] qui s’occupe de la maladie plus que du malade, qui se détourne des séquelles de la maladie (cicatrices douloureuses, conséquences secondaires des traitements, douleurs post-opératoires), est renforcée avec les succès de la médecine. Elle repose sur un point de vue optimiste sur les pouvoirs et les ambitions de la médecine, et la relégation de la douleur à un rang modeste ou négligeable est comme la rançon ou l’envers de cet optimisme. Cette situation définit aussi un certain type de relations entre le médecin et le malade, elle souligne l’absence du malade comme sujet, l’aliénation de sa parole et de son vouloir.
As condições históricas de surgimento de um tal olhar médico, frio, racional, linear e centrado numa recusa da proximidade face à subjectividade do doente encontram em Michel Foucault (Foucault, 2007) um interessante intérprete. Reportando-se ao nascimento da clínica moderna, este autor afirma que ela repousa, em boa medida, justamente naquela reconversão do olhar (e concomitantemente da relação com o paciente):
La médecine moderne a fixé d’elle-même sa date de naissance vers les dernières années du XVIIIe siècle. Quand elle se prend à réfléchir sur elle-même, elle identifie l’origine de sa positivité à un retour, par-delà toute théorie, à la modestie efficace du perçu. En fait, cet empirisme présumé repose non sur une redécouverte des valeurs absolues du visible, non sur l’abandon résolu des systèmes et de leurs chimères, mais sur une réorganisation de cet espace manifeste et secret qui fut ouvert lorsqu’un regard millénaire c’est arrêté sur la souffrance des hommes. Le rajeunissement de la perception médicale, l’illumination vive des couleurs et des choses sous le regard des premiers cliniciens n’est pourtant pas un mythe ; au début du XIXe siècle, les médecins ont décrit ce qui, pendant des siècles, était resté au-dessous du seuil du visible et de l’énonçable (…). Les formes de la rationalité médicale s’enfoncent dans l’épaisseur merveilleuse de la perception, en offrant comme visage premier de la vérité le grain des choses, leur couleur, leurs taches, leur dureté, leur adhérence. L’espace de l’expérience semble s’identifier au domaine du regard attentif, de cette vigilance empirique ouverte à l’évidence des seuls contenus visibles. L’œil devient le dépositaire et la source de la clarté ; il a pouvoir de faire venir au jour une vérité qu’il ne reçoit que dans la mesure où il lui a donné le jour ; en s’ouvrant, il ouvre le vrai d’une ouverture première (…).
Igualmente Foucault sugere, por outro lado, que este processo de racionalização, associado ao surgimento da prática clínica em condições de modernidade, exige uma forma específica de relacionamento, racionalizado também ele, mas assimétrico:
L’expérience clinique (…) a vite été prise pour un affrontement simple, sans concept, d’un regard et d’un visage, d’un coup d’œil et d’un corps muet, sorte de contact préalable à tout discours et libre des embarras du langage, par quoi deux individus vivants sont «encagés» dans une situation commune mais non réciproque (Foucault, op.cit.).
Este olhar reconvertido, moderno, asséptico e higienista, capaz de encarar a doença como fenómeno empírico e sobretudo, de olhar o doente de uma forma hiper-racionalizada e fundada numa perspectiva fisiológica, é um olhar a que Georges Canguilhem dedicou o seu estudo. Este autor consegue identificar uma contradição fundamental na aparente assepsia deste olhar fisiologista, do ponto de vista da própria ideia de medicina. Sobretudo, naquilo que tal olhar envolve de esquecimento da condição subjectiva do doente e da patologia e do doente como fundamentos primeiros do estudo da fisiologia e até mesmo de qualquer ideia de doença. Realizando um roteiro crítico pela história da clínica, Canguilhem (Canguilhem, 2007) sente-se autorizado a dizer que
Tout concept empirique de maladie conserve un rapport au concept axiologique de la maladie. Ce n’est pas, par conséquent, une méthode objective que fait qualifier de pathologique un phénomène biologique considéré. C’est toujours la relation à l’individu malade, par intermédiaire de la clinique, qui justifie la qualification de pathologique. Tout en admettant l’importance des méthodes objectives d’observation et d’analyse dans la pathologie, il ne semble pas possible qu’on puisse parler, en toute correction logique, de «pathologie objective». Certes une pathologie peut être méthodique, critique, expérimentalement armée. Elle peut être dit objective, par référence au médecin qui la pratique. Mais l’intention du pathologiste ne fait pas que son objet soit une matière vidée de subjectivité.
Nos termos deste seu roteiro crítico, burilado a partir da sua dupla formação, em filosofia e em medicina, Canguilhem faz o seguinte diagnóstico:
(…) il y a (…) un oubli professionnel – peut-être susceptible d’explication par la théorie freudienne des lapsus et actes manqués – qui doit être relevé. Le médecin a tendance à oublier que ce sont les malades qui appellent le médecin. Le physiologiste a tendance à oublier qu’une médecine clinique et thérapeutique, point toujours tellement absurde qu’on voudrait dire, a précédé la physiologie (Cfr. op.cit.).
Independentemente do reconhecimento do carácter normativo que a medicina não pode, segundo Canguilhem, deixar de ter, o que importa uma vez mais reter é, precisamente, o confronto entre uma medicina racionalista, societária e cujas exigências de coordenação ao nível da constituição do laço social com o doente relegam para segundo plano a sua subjectividade e uma medicina mais centrada no doente, que reserva um lugar a este, para lá da eficácia industrial (Boltanski e Thévenot, 1991; Resende, 2003) dos seus próprios dispositivos terapêuticos e técnicos. É justamente sobre este ponto crítico e revelador que se estabelece o difícil e complexo processo de construção ideológica de um domínio de intervenção médica novo: os cuidados paliativos, que estudo presentemente, em Portugal e na sua articulação com a medicina oncológica.
Queria só deixar umas palavras de incentivo para o estudo que se propõe fazer e elogio pela coragem em "agarrar" um campo tão delicado. Será um contributo valioso para uma reflexão social e reforço para a consequente e imperiosa mudança de atitude.
ResponderEliminarhttp://outra_alma.blogs.sapo.pt
Muito obrigado pelo incentivo. é sempre bom sabermos que aquilo que fazemos tem sentido para outras pessoas também.
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