sexta-feira, 19 de julho de 2013

Outrora


Imagem extraída de: http://hdw.eweb4.com/out/162573.html

Dei comigo há pouco a reler um "velhinho" trabalho realizado por mim, para uma cadeira de Metodologias, durante a frequência do meu mestrado. Resolvi partilhar parte do texto, mesmo sem revisão.

© Alexandre Cotovio Martins

Da exaustividade e da aleatoriedade na investigação sociológica

Jean-Claude Passeron defende a posição segundo a qual não se pode esperar, no trabalho sociológico, que um levantamento de dados seja, quer exaustivo, quer aleatório (Cfr. Passeron, 1995).
            De acordo com esta posição, apenas uma concepção naïve da investigação sociológica pode fundamentar a crença na exaustividade e na aleatoriedade na constituição de um corpus.
            Com efeito, se se admitir, com Augusto Santos Silva, que “o mundo que pretendemos representar é infinito, quer em extensão, quer em intensidade: tão impossível se tornaria dar conta da infinita variedade de fenómenos nele contidos como da infinita variedade de elementos[1] e aspectos de um único fenómeno” (Cfr. Silva, 1988, pp.45-106), rapidamente se compreende que, por mais que se considere seja natural qualquer acto constitutivo de um objecto como “dado” na constatação perceptiva[2], não se pode esperar que esta última seja, ela própria, acomodação pura e simples ao real. Na verdade, é adequado dizer-se que o próprio acto perceptivo é um acto de construção[3], em que intervêm inúmeros factores, sendo que um objecto apenas aparece como aparece por esse acto constitutivo. Por exemplo, aquilo a que chamamos cores não são mais que um determinado modo de percepção de uma parte daquilo a que chamamos luz. Através deste exemplo, percebe-se que o real nunca é simplesmente “dado” ao entendimento, mas, muito pelo contrário, o que se designa correntemente como tal é uma construção complexa em que influem inúmeros factores de peso diferenciado. Posto isto, para entrar mais especificamente na problemática em causa, é importante afirmar que qualquer acto descritivo é, como sugerido acima, parcial: trata-se de algo que se poderia designar metaforicamente como uma relação luz-sombra, na medida em que, quando se constitui um determinado aspecto de um objecto qualquer como “dado”, através de uma descrição pertinente face a determinados protocolos de observação, está-se, no mesmo golpe, a relegar para a “obscuridade” todos os outros aspectos do objecto, que se podem mostrar pertinentes face a outros protocolos de observação. Assim, parece que o acto do entendimento dirigido a um objecto é, simultaneamente, constitutivo e exclusivo. Ao constituir como significativo, exclui; a partir daqui, talvez se afigure importante procurar compreender o que leva, a cada momento, a constituir como significativo este ou aquele objecto ou este ou aquele aspecto de um objecto. Por outras palavras, é decerto importante o estudo dos factores que influem na constituição das descrições.
            A explicação, já clássica em sociologia, mas, nem por isso, talvez, menos pertinente ou exacta, para a dilucidação desta última questão, foi dada por Max Weber, na linha das correntes neo-kantianas da filosofia histórica alemã. Senão, veja-se: “todo o conhecimento da realidade cultural é (...) sempre um conhecimento sob pontos de vista especificamente particularizados. Quando exigimos do historiador ou do investigador de ciências sociais que saiba distinguir- como pressuposto elementar- o importante do não importante, e que para operar essa distinção possua os necessários “pontos de vista”, isso quer dizer simplesmente que ele terá de saber referir – consciente ou inconscientemente – os processos da realidade a “valores culturais” e, de acordo com isso, seleccionar as conexões que para nós são significativas. A opinião, com que deparamos frequentemente, de que aqueles pontos de vista podem ser “retirados à própria matéria”, provém da ingénua ilusão do especialista que não se dá conta de que, em virtude das ideias de valor com que inconscientemente abordou a matéria em estudo, seleccionou um aspecto ínfimo da absoluta infinidade, e só esse componente lhe interessa considerar ( Cfr. Weber, Max, in Cruz, 1989, pp.632-633)”. Este problema é mesmo um problema epistemológico geral[4], que não apenas da epistemologia das ciências sociais. Conforme escreve Santos Silva, referindo-se às ciências “é-lhes imprescindível perspectivar os fenómenos a partir de certos ângulos de focagem; seleccionar de entre a infinitude de elementos do real aqueles que lhes interessam, aqueles que convertem em balizas empíricas dos problemas que colocam, abstraindo dos restantes” (Cfr. Silva, 1988, pp. 45-106).
            Mas, como se define este interesse? Uma resposta fundada a esta questão exigiria, só por si, um tratamento específico de grande fôlego, mas pode-se, pelo menos, avançar algo, de acordo com aquilo que diz Jean-Claude Passeron. Para este autor, a pertinência de uma linguagem teórica de descrição do mundo é um facto social, um estado determinado do acordo linguístico existente no seio de uma comunidade falante (Cfr. Passeron, 1991, p.361). Segundo o autor, “dans les cas d'une «science empírique», les assertions qui affirment ou nient un état du monde – qui énoncent que «tel est le cas, ou non» - supposent que le système des «preuves» et des «constats» soit fondé sur un accord intersubjectif (et donc linguistique) entre chercheurs capable de stabiliser le formulation des «protocoles» de l'observation empirique dans le même langage que celui de leur rattachement aux concepts d'une théorie explicative ou interprétative. La description épistémologique prend la forme d'une description des argumentations naturelles lorsque les faits construits par une science dans un espace logique sont les faits «empiriques» et non plus seulement des faits «formels» sur lesquels peuvent porter des «démonstrations» au sens strict. Seule, en effet, une langue naturelle peut jouer le rôle d'une métalangue pour décrire un état des rapports entre le langage et le monde (Cfr. Passeron, 1995, p.16)”. É, pois, a fortiori evidente que, para Jean-Claude Passeron, apenas uma língua natural pode falar das relações entre uma linguagem artificial e um “estado de coisas”. Este autor, rejeita, assim, automaticamente, certos projectos logicistas, como, para citar um exemplo, a tentativa de Gottlob Frege para fundar uma ideografia, que definiria, de uma vez por todas e de forma absolutamente unívoca, as relações entre a linguagem que a constituiria e o mundo. Uma postura teórica clássica que pode servir para inteligibilizar esta questão é a de Ferdinand de Saussure, que afirmou a impossibilidade de encontrar relações necessárias entre uma qualquer linguagem e as “coisas”, concluindo da arbitrariedade referencial das línguas[5]. Dito isto, percebe-se melhor que seja, sempre, um sistema axiológico que orienta a escolha de uma determinada descrição da realidade em detrimento de outras possíveis e, assim, os factos pertinentes face a essas descrições são sempre função de um acordo intersubjectivo – que reenvia, ele próprio, para toda uma estrutura social, como defende Bourdieu, referindo-se embora a outras questões:”a relação de força linguística não é totalmente dominada pelas forças linguísticas em presença e (...), através das línguas faladas, dos falantes que as falam, dos grupos definidos pela posse da compreensão correspondente, toda a estrutura social está presente em cada interacção (e, desta forma, também no discurso)”. ( Cfr. Bourdieu, 1995, p.55 ). O mais importante talvez seja, a este nível, a tarefa de explicitação desses pressupostos implícitos que, por menos conhecidos, tenderão a ser menos controlados na prática científica. Jean-Claude Passeron escreve ( Cfr. Passeron, 1991, pp. 398-399 ): “Selon que les conventions qui font correspondre des énoncés et des «états de choses» (a) portent sur les énoncés engendrés par une langue naturelle ou stabilisés dans une culture pratique, sans intervention active des locuteurs ou des pratiquants, ou selon que (b) ces conventions sont élaborées explicitement et travaillées méthodiquement par des spécialistes aux fins de protocolariser une langue de description, on a affaire (a) à une théorie implicite du monde ou (b) à une connaissance explicitement théorique du monde”. A explicitação é, pois, para Passeron, um “critério de demarcação” particularmente significativo[6].
            Quanto à segunda questão, a da impossibilidade de um inquérito sobre o mundo histórico ser aleatório, parece pertinente dizer-se que isso se deve a que talvez seja impossível garantir, totalmente a priori, a existência de uma distribuição homogénea das probabilidades para cada indivíduo de uma população considerada ser amostrado. Na verdade, se se desconhece a população, não se pode garantir à partida que todos os seus elementos tenham uma probabilidade igual de serem amostrados[7].
            É importante ter em conta que parece plausível a presunção de que a probabilidade de existência objectiva de uma probabilidade exactamente igual de ser amostrado para cada indivíduo de uma população é muito baixa, se não nula. Seria necessário existir uma distribuição dos indivíduos da população totalmente homogénea por referência à possibilidade de serem entrevistados. Um exemplo da dificuldade resulta da parcialidade espácio-temporal das sucessivas situações de inquérito que podem ser conduzidas para tentar cumprir o ideal da aleatoriedade total. Ademais, poder-se-á perguntar se a própria ideia de equi-distribuição espácio-temporal de um determinado conjunto de propriedades ou indivíduos, que subjaz à crença na possibilidade de uma representatividade perfeita baseada na aleatoriedade, tem uma probabilidade razoável de se realizar no campo da investigação sociológica. Pode-se, com efeito, questionar a ideia de que, num determinado contexto histórico, a probabilidade de todos os indivíduos pertinentes para a investigação conduzida serem interpelados por um entrevistador e serem por ele entrevistados é igual. Se a probabilidade de, após lançamento de um dado honesto sobre uma superfície homogénea, uma sua face determinada ficar virada para cima é de 1/6, será que, numa população de, digamos, 500 indivíduos, a probabilidade de cada um deles se cruzar com um entrevistador e ser por ele entrevistado é de 1/500? Talvez não. No caso do lançamento do dado, para retomar o exemplo, o conjunto das condições necessárias para que se determine o espaço de acontecimentos que permitem o cálculo da probabilidade de saída de uma dada face é, em princípio, relativamente simples. A determinação dos factores que influem no acontecimento provável é possível. Mas, no caso da observação histórica, as coisas não são tão simples. Como diz Passeron ( 1995, p.28), “on sait (...) qu'il ne suffit pas de procéder «au hasard» dans une campagne de récollection des données pour avoir opéré, au sens statistique du terme, un «échantillonage aléatoire», tant que l'on ne connaît pas, afin de pouvoir y échantilloner au sens strict, la population de réference ( population de propriétés ou population d'individus) susceptible d'être mise en liste «sans omission ni répétition»”. Por outras palavras, surge, desde logo, o problema do desconhecimento, a priori, das condições pertinentes que definem a distribuição de um conjunto de indivíduos ou propriedades por um determinado arranjo espácio-temporal – sendo que esse desconhecimento não pode, talvez muito pelo contrário, ser ultrapassado pela mera recolha “ao acaso” de dados. Imagine-se, por exemplo, que se pretende saber, por amostragem, qual a percentagem de indivíduos de uma população que possuem uma determinada característica, seja ela um rendimento superior a  x. Sem qualquer tipo de conjectura sobre os intervalos espácio-temporais onde seria mais provável encontrar indivíduos com essa característica, o risco de sub- ou sobre-representação do número desses indivíduos na amostra, construída “totalmente” ao acaso, pode aumentar. Com efeito, a distribuição dos indivíduos com esse rendimento pelos diversos locais e períodos amostráveis não é necessariamente homogénea. Ou seja, a probabilidade de encontrar e entrevistar um indivíduo com o rendimento x não é idêntica para todo e qualquer local e período. Ora, a amostragem ao acaso, aceite acriticamente, parte do pressuposto implícito de que todos os locais e períodos possíveis representam intervalos em que a probabilidade de encontrar e entrevistar um indivíduo da população em causa é, ou será tendencialmente[8] a mesma, o que, di-lo a teoria sociológica, é as mais das vezes, falso. No caso dos rendimentos, é por demais sabido que os indivíduos com diferentes rendimentos tendem a encontrar-se, nas sociedades modernas, desigualmente distribuídos por relação ao espaço e ao tempo.
            Como é compreensível, apenas o estabelecimento de conjecturas teoricamente fundadas (isto é, que integrem, também, informação empírica) pode ser relevante para a decisão do investigador de amostrar uma população de uma determinada forma. O problema é que o investigador não possui, nas ciências históricas, dado o carácter fluido, transitório, assimétrico, dos fenómenos sociais, uma justificação de pertinência teórica definitiva para amostrar uma população desta ou daquela forma – como o terá, por exemplo, o cientista experimental. Por aqui compreende-se, sem dúvida, a insistência de Jean-Claude Passeron na necessidade de o raciocínio sociológico ser “controlado” por uma argumentação cerrada, que faz intervir no seu discurso o maior número possível de comparações entre contextos heterogéneos, ou seja, contextos cujas eventuais analogias não esgotam a infinitude dos seus traços pertinentes. Tendo como adquirida a noção de que os caracteres pertinentes para a descrição e explicação de um contexto histórico são potencialmente infinitos, o sociólogo não pode esperar aplicar de forma válida a cláusula ceteribus paribus, nem postular a priori a existência de uma distribuição espácio-temporal uniforme dos indivíduos para a sua investigação. Assim, Passeron sugere que sejam as próprias questões, teoricamente informadas, colocadas pelo investigador ao real, que conduzam a sua escolha de determinados “casos”, onde se espera que se possa observar o funcionamento dos processos que se pretende explicar. Trata-se, então, de “privilegiar” certos casos em detrimento de outros, considerados menos pertinentes à luz do raciocínio desenvolvido.
            De acordo com esta perspectiva, a generalização dos resultados das investigações sociológicas não resulta de um mero automatismo formal, mas de um raciocínio comparativo, capaz de procurar encontrar analogias entre contextos heterogéneos. Ou seja, o sociólogo não pode esperar executar generalizações através do simples uso de automatismos sintácticos de uma qualquer linguagem formal, mas sim pelo recurso à comparação entre contextos definidos no tempo e no espaço, comparação onde os próprios argumentos quantitativos têm, aliás, todo o sentido[9]. O sociólogo, para efectuar este tipo de comparação, deve munir-se de uma capacidade de trabalhar conceptualmente as semelhanças que supõe existentes entre contextos heterogéneos, aumentando, assim, a semântica empírica dos conceitos utilizados nesse trabalho (generalização). Ao tratar como equivalentes dois contextos distintos, o investigador presume essa equivalência, de acordo com pressupostos teóricos que deve explicitar, para não acabar por cair em metafísicas inconscientes ou em filosofias da história com os sinais exteriores da ciência.




[1]    Conceito que um autor como Gaston Bachelard criticou; para o epistemólogo francês, o “elemento” clássico de certas linhas argumentativas positivistas ou realistas não é uma noção completamente exacta. Leia-se um exemplo dessa crítica na sua obra: “Un élément n'est (...) un ensemble de propriétés différentes comme le veut l'intuition substantialiste usuelle. C'est une collection d'états possibles pour une propriété particulière. Un élément n'est pas une hétérogénéité condensée. C'est une homogénéité dispersée” (Cfr. Bachelard, 1988,p.89 e segs.).
[2]    Proximidade que define o ideal dos credos empiristas.
[3]    Que não resulta sequer, propriamente falando, exclusivamente do aparelho sensorial da espécie humana, mas, entre outras coisas, de um processo de socialização; como defende Norbert Elias, “além da sua língua, as crianças adquirem, inevitavelmente, partes do fundo de conhecimento da sociedade em que crescem, as quais se interligam, de forma sistemática, com o conhecimento que pode ser adquirido através da própria experiência. O conhecimento adquirido por uma criança a partir da sua experiência pessoal e o conhecimento que faz parte do fundo social de conhecimento tendem a ficar intimamente ligados, tornando-se difícil distingui-los (Cfr. Elias, 1994). Noutra sua obra, o autor escreve: (Cfr. Elias, 1991, p.78):”Du fait même que la commande relationnelle relativement indéfinie du nouveau-né ne se définit et ne se règle pour prendre forme véritablement humaine qu'au travers du rapport avec les autres, ce que nous rencontrons par la suite sous la forme de “psychisme” de l'adulte ne peut être pas en soi extérieur à la société ou asocial, mais est au contraire fonction de cette unité relationnelle d'ordre dominant que nous appelons la “société”; toute la façon dont l'individu se considère et se dirige dans les rapports avec les autres dépend de la structure du groupe humain dont il apprend à dire “nous”.
[4]    O que o próprio Weber não deixou de perceber e analisar, na esteira dos filósofos neo-kantianos.
[5]    Veja-se, a este respeito Iorgu Iordan, 1982, pp.373 e seguintes.
[6]    O que, como resulta claro, implica, pelo menos em alguns casos, toda uma sociologia do conhecimento e, mais particularmente, uma sociologia do conhecimento científico. Seria talvez pertinente questionar, noutro âmbito, se pode haver uma gnoseologia consequente que não leve em conta os contributos de uma sociologia do conhecimento.
[7]    Uma teoria objectiva da probabilidade, como a defendida por Karl Popper (Cfr., Popper, 1998, pp. 160-236 ) que propõe um cálculo probabilístico baseado nas frequências observadas, não o fará, pensa-se. Porque, não se conhe- cendo distribuição de frequências nenhuma, não se pode tecer considerações rigorosas acerca das distribuições a observar. 
[8]    De acordo com a Lei dos Grandes Números.
[9]    Sobretudo se se perfilhar a postura de Passeron, que atenua, ou mesmo dissolve, num certo sentido, a distinção entre estratégias de investigação “quantitativas” e “qualitativas”  (cfr. Passeron, 1995,1996).

sábado, 13 de julho de 2013

Integração e coesão

Tandis que le modèle de l'intégration sociale vise à installer des normes publiques durables, sinon éternelles et universelles, la cohésion appelle la gouvernance et le pilotage par des indicateurs utilisés comme outils.

François Dubet, Le travail des soctétés.