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Dei comigo há pouco a reler um "velhinho" trabalho realizado por mim, para uma cadeira de Metodologias, durante a frequência do meu mestrado. Resolvi partilhar parte do texto, mesmo sem revisão.
© Alexandre Cotovio Martins
Da exaustividade e da aleatoriedade na investigação sociológica
Jean-Claude Passeron defende a posição segundo a qual não se pode
esperar, no trabalho sociológico, que um levantamento de dados seja, quer exaustivo,
quer aleatório (Cfr. Passeron, 1995).
De acordo com esta
posição, apenas uma concepção naïve da investigação sociológica pode
fundamentar a crença na exaustividade e na aleatoriedade na constituição de um corpus.
Com efeito, se se admitir, com Augusto Santos Silva, que “o mundo que
pretendemos representar é infinito, quer em extensão, quer em intensidade: tão
impossível se tornaria dar conta da infinita variedade de fenómenos nele
contidos como da infinita variedade de elementos[1] e
aspectos de um único fenómeno” (Cfr. Silva, 1988, pp.45-106), rapidamente se
compreende que, por mais que se considere seja natural qualquer acto constitutivo de um objecto
como “dado” na constatação perceptiva[2], não se
pode esperar que esta última seja, ela própria, acomodação pura e simples ao
real. Na verdade, é adequado dizer-se que o próprio acto perceptivo é um acto
de construção[3],
em que intervêm inúmeros factores, sendo que um objecto apenas aparece
como aparece por esse acto constitutivo. Por exemplo, aquilo a que chamamos
cores não são mais que um determinado modo de percepção de uma parte daquilo a
que chamamos luz. Através deste exemplo, percebe-se que o real nunca é
simplesmente “dado” ao entendimento, mas, muito pelo contrário, o que se
designa correntemente como tal é uma construção complexa em que influem
inúmeros factores de peso diferenciado. Posto isto, para entrar mais especificamente
na problemática em causa, é importante afirmar que qualquer acto descritivo é,
como sugerido acima, parcial: trata-se de algo que se poderia designar
metaforicamente como uma relação luz-sombra, na medida em que, quando se
constitui um determinado aspecto de um objecto qualquer como “dado”, através de
uma descrição pertinente face a determinados protocolos de observação, está-se,
no mesmo golpe, a relegar para a “obscuridade” todos os outros aspectos do
objecto, que se podem mostrar pertinentes face a outros protocolos de
observação. Assim, parece que o acto do entendimento dirigido a um objecto é,
simultaneamente, constitutivo e exclusivo. Ao constituir como
significativo, exclui; a partir daqui, talvez se afigure importante procurar
compreender o que leva, a cada momento, a constituir como significativo este ou
aquele objecto ou este ou aquele aspecto de um objecto. Por outras palavras, é
decerto importante o estudo dos factores que influem na constituição das
descrições.
A explicação, já
clássica em sociologia, mas, nem por isso, talvez, menos pertinente ou exacta,
para a dilucidação desta última questão, foi dada por Max Weber, na linha das
correntes neo-kantianas da filosofia histórica alemã. Senão, veja-se: “todo o
conhecimento da realidade cultural é (...) sempre um conhecimento sob pontos
de vista especificamente particularizados. Quando exigimos do
historiador ou do investigador de ciências sociais que saiba distinguir- como
pressuposto elementar- o importante do não importante, e que para operar essa
distinção possua os necessários “pontos de vista”, isso quer dizer simplesmente
que ele terá de saber referir – consciente ou inconscientemente – os processos
da realidade a “valores culturais” e, de acordo com isso, seleccionar as
conexões que para nós são significativas. A opinião, com que deparamos
frequentemente, de que aqueles pontos de vista podem ser “retirados à própria
matéria”, provém da ingénua ilusão do especialista que não se dá conta de que,
em virtude das ideias de valor com que inconscientemente abordou a matéria em
estudo, seleccionou um aspecto ínfimo da absoluta infinidade, e só esse
componente lhe interessa considerar ( Cfr. Weber, Max, in Cruz,
1989, pp.632-633)”. Este problema é mesmo um problema epistemológico geral[4], que não
apenas da epistemologia das ciências sociais. Conforme escreve Santos Silva,
referindo-se às ciências “é-lhes imprescindível perspectivar os
fenómenos a partir de certos ângulos de focagem; seleccionar de entre a
infinitude de elementos do real aqueles que lhes interessam, aqueles que
convertem em balizas empíricas dos problemas que colocam, abstraindo dos
restantes” (Cfr. Silva, 1988, pp. 45-106).
Mas, como se define
este interesse? Uma resposta fundada a esta questão exigiria, só por si,
um tratamento específico de grande fôlego, mas pode-se, pelo menos, avançar
algo, de acordo com aquilo que diz Jean-Claude Passeron. Para este autor, a
pertinência de uma linguagem teórica de descrição do mundo é um facto social,
um estado determinado do acordo linguístico existente no seio de uma comunidade
falante (Cfr. Passeron, 1991, p.361). Segundo o autor, “dans les cas d'une
«science empírique», les assertions qui affirment ou nient un état du monde –
qui énoncent que «tel est le cas, ou non» - supposent que le système des
«preuves» et des «constats» soit fondé sur un accord intersubjectif (et donc
linguistique) entre chercheurs capable de stabiliser le formulation des
«protocoles» de l'observation empirique dans le même langage que celui de leur
rattachement aux concepts d'une théorie explicative ou interprétative. La description
épistémologique prend la forme d'une description des argumentations
naturelles lorsque les faits construits par une science dans un espace logique
sont les faits «empiriques» et non plus seulement des faits «formels» sur
lesquels peuvent porter des «démonstrations» au sens strict. Seule, en effet,
une langue naturelle peut jouer le rôle d'une métalangue pour décrire un état
des rapports entre le langage et le monde (Cfr. Passeron, 1995, p.16)”. É, pois, a fortiori evidente que, para Jean-Claude Passeron,
apenas uma língua natural pode falar das relações entre uma linguagem
artificial e um “estado de coisas”. Este autor, rejeita, assim,
automaticamente, certos projectos logicistas, como, para citar um exemplo, a
tentativa de Gottlob Frege para fundar uma ideografia, que definiria, de
uma vez por todas e de forma absolutamente unívoca, as relações entre a
linguagem que a constituiria e o mundo. Uma postura teórica clássica que pode
servir para inteligibilizar esta questão é a de Ferdinand de Saussure, que
afirmou a impossibilidade de encontrar relações necessárias entre uma qualquer
linguagem e as “coisas”, concluindo da arbitrariedade referencial das línguas[5]. Dito
isto, percebe-se melhor que seja, sempre, um sistema axiológico que orienta a escolha
de uma determinada descrição da realidade em detrimento de outras possíveis e,
assim, os factos pertinentes face a essas descrições são sempre função
de um acordo intersubjectivo – que reenvia, ele próprio, para toda uma
estrutura social, como defende Bourdieu, referindo-se embora a outras
questões:”a relação de força linguística não é totalmente dominada pelas forças
linguísticas em presença e (...), através das línguas faladas, dos falantes que
as falam, dos grupos definidos pela posse da compreensão correspondente, toda a
estrutura social está presente em cada interacção (e, desta forma, também no
discurso)”. ( Cfr. Bourdieu, 1995, p.55 ). O mais importante talvez seja, a
este nível, a tarefa de explicitação desses pressupostos implícitos que,
por menos conhecidos, tenderão a ser menos controlados na prática científica.
Jean-Claude Passeron escreve ( Cfr. Passeron, 1991, pp. 398-399 ): “Selon que
les conventions qui font correspondre des énoncés et des «états de
choses» (a) portent sur les énoncés engendrés par une langue naturelle ou
stabilisés dans une culture pratique, sans intervention active des locuteurs ou
des pratiquants, ou selon que (b) ces conventions sont élaborées explicitement
et travaillées méthodiquement par des spécialistes aux fins de protocolariser
une langue de description, on a affaire (a) à une théorie implicite du
monde ou (b) à une connaissance explicitement théorique du monde”. A explicitação
é, pois, para Passeron, um “critério de demarcação” particularmente
significativo[6].
Quanto à segunda
questão, a da impossibilidade de um inquérito sobre o mundo histórico ser
aleatório, parece pertinente dizer-se que isso se deve a que talvez seja impossível garantir, totalmente a priori, a existência de uma
distribuição homogénea das probabilidades para cada indivíduo de uma população
considerada ser amostrado. Na verdade, se se desconhece a população, não se
pode garantir à partida que todos os seus elementos tenham uma probabilidade igual
de serem amostrados[7].
É importante ter em
conta que parece plausível a presunção de que a probabilidade de existência
objectiva de uma probabilidade exactamente igual de ser amostrado para cada
indivíduo de uma população é muito baixa, se não nula. Seria necessário existir
uma distribuição dos indivíduos da população totalmente homogénea por
referência à possibilidade de serem entrevistados. Um exemplo da dificuldade
resulta da parcialidade espácio-temporal das sucessivas situações de inquérito
que podem ser conduzidas para tentar cumprir o ideal da aleatoriedade total.
Ademais, poder-se-á perguntar se a própria ideia de equi-distribuição
espácio-temporal de um determinado conjunto de propriedades ou indivíduos, que
subjaz à crença na possibilidade de uma representatividade perfeita baseada na
aleatoriedade, tem uma probabilidade razoável de se realizar no campo da
investigação sociológica. Pode-se, com efeito, questionar a ideia de que, num
determinado contexto histórico, a probabilidade de todos os indivíduos
pertinentes para a investigação conduzida serem interpelados por um
entrevistador e serem por ele entrevistados é igual. Se a probabilidade de,
após lançamento de um dado honesto sobre uma superfície homogénea, uma sua face
determinada ficar virada para cima é de 1/6, será que, numa população de,
digamos, 500 indivíduos, a probabilidade de cada um deles se cruzar com um
entrevistador e ser por ele entrevistado é de 1/500? Talvez não. No caso do
lançamento do dado, para retomar o exemplo, o conjunto das condições
necessárias para que se determine o espaço de acontecimentos que permitem o
cálculo da probabilidade de saída de uma dada face é, em princípio,
relativamente simples. A determinação dos factores que influem no acontecimento
provável é possível. Mas, no caso da observação histórica, as coisas não são
tão simples. Como diz Passeron ( 1995, p.28), “on sait (...) qu'il ne suffit
pas de procéder «au hasard» dans une campagne de récollection des données pour
avoir opéré, au sens statistique du terme, un «échantillonage aléatoire», tant
que l'on ne connaît pas, afin de pouvoir y échantilloner au sens strict, la
population de réference ( population de propriétés ou population d'individus)
susceptible d'être mise en liste «sans omission ni répétition»”. Por outras
palavras, surge, desde logo, o problema do desconhecimento, a priori,
das condições pertinentes que definem a distribuição de um conjunto de
indivíduos ou propriedades por um determinado arranjo espácio-temporal – sendo
que esse desconhecimento não pode, talvez muito pelo contrário, ser
ultrapassado pela mera recolha “ao acaso” de dados. Imagine-se, por exemplo,
que se pretende saber, por amostragem, qual a percentagem de indivíduos de uma
população que possuem uma determinada característica, seja ela um rendimento
superior a x. Sem qualquer tipo de
conjectura sobre os intervalos espácio-temporais onde seria mais provável
encontrar indivíduos com essa característica, o risco de sub- ou
sobre-representação do número desses indivíduos na amostra, construída
“totalmente” ao acaso, pode aumentar. Com efeito, a distribuição dos indivíduos
com esse rendimento pelos diversos locais e períodos amostráveis não é
necessariamente homogénea. Ou seja, a probabilidade de encontrar e entrevistar
um indivíduo com o rendimento x não é idêntica para todo e qualquer local e
período. Ora, a amostragem ao acaso, aceite acriticamente, parte do pressuposto
implícito de que todos os locais e períodos possíveis representam intervalos em
que a probabilidade de encontrar e entrevistar um indivíduo da população em
causa é, ou será tendencialmente[8]
a mesma, o que, di-lo a teoria sociológica, é as mais das vezes, falso. No caso
dos rendimentos, é por demais sabido que os indivíduos com diferentes
rendimentos tendem a encontrar-se, nas sociedades modernas, desigualmente
distribuídos por relação ao espaço e ao tempo.
Como é compreensível,
apenas o estabelecimento de conjecturas teoricamente fundadas (isto é,
que integrem, também, informação empírica) pode ser relevante para a decisão
do investigador de amostrar uma população de uma determinada forma. O problema
é que o investigador não possui, nas ciências históricas, dado o carácter
fluido, transitório, assimétrico, dos fenómenos sociais, uma justificação de
pertinência teórica definitiva para amostrar uma população desta ou daquela
forma – como o terá, por exemplo, o cientista experimental. Por aqui
compreende-se, sem dúvida, a insistência de Jean-Claude Passeron na necessidade
de o raciocínio sociológico ser “controlado” por uma argumentação cerrada, que
faz intervir no seu discurso o maior número possível de comparações entre
contextos heterogéneos, ou seja, contextos cujas eventuais analogias não
esgotam a infinitude dos seus traços pertinentes. Tendo como adquirida a noção
de que os caracteres pertinentes para a descrição e explicação de um contexto
histórico são potencialmente infinitos, o sociólogo não pode esperar aplicar de
forma válida a cláusula ceteribus paribus, nem postular a priori
a existência de uma distribuição espácio-temporal uniforme dos indivíduos para
a sua investigação. Assim, Passeron sugere que sejam as próprias questões,
teoricamente informadas, colocadas pelo investigador ao real, que conduzam a
sua escolha de determinados “casos”, onde se espera que se possa observar o
funcionamento dos processos que se pretende explicar. Trata-se, então, de
“privilegiar” certos casos em detrimento de outros, considerados menos pertinentes
à luz do raciocínio desenvolvido.
De acordo com esta
perspectiva, a generalização dos resultados das investigações sociológicas não
resulta de um mero automatismo formal, mas de um raciocínio comparativo, capaz
de procurar encontrar analogias entre contextos heterogéneos. Ou seja, o
sociólogo não pode esperar executar generalizações através do simples uso de
automatismos sintácticos de uma qualquer linguagem formal, mas sim pelo recurso
à comparação entre contextos definidos no tempo e no espaço, comparação
onde os próprios argumentos quantitativos têm, aliás, todo o sentido[9]. O
sociólogo, para efectuar este tipo de comparação, deve munir-se de uma
capacidade de trabalhar conceptualmente as semelhanças que supõe existentes
entre contextos heterogéneos, aumentando, assim, a semântica empírica dos
conceitos utilizados nesse trabalho (generalização). Ao tratar como
equivalentes dois contextos distintos, o investigador presume essa
equivalência, de acordo com pressupostos teóricos que deve explicitar, para não
acabar por cair em metafísicas inconscientes ou em filosofias da história com
os sinais exteriores da ciência.
[1] Conceito que um autor como
Gaston Bachelard criticou; para o epistemólogo francês, o “elemento” clássico
de certas linhas argumentativas positivistas ou realistas não é uma noção
completamente exacta. Leia-se um exemplo dessa crítica na sua obra: “Un élément
n'est (...) un ensemble de propriétés différentes comme le veut l'intuition
substantialiste usuelle. C'est une collection d'états possibles pour une propriété particulière.
Un élément n'est pas une hétérogénéité condensée. C'est une homogénéité dispersée” (Cfr. Bachelard, 1988,p.89 e segs.).
[2] Proximidade que define o ideal dos credos
empiristas.
[3] Que não resulta sequer,
propriamente falando, exclusivamente do aparelho sensorial da espécie humana, mas, entre outras coisas, de um processo de socialização; como defende Norbert
Elias, “além da sua língua, as crianças adquirem, inevitavelmente, partes do
fundo de conhecimento da sociedade em que crescem, as quais se interligam, de
forma sistemática, com o conhecimento que pode ser adquirido através da própria
experiência. O conhecimento adquirido por uma criança a partir da sua
experiência pessoal e o conhecimento que faz parte do fundo social de
conhecimento tendem a ficar intimamente ligados, tornando-se difícil
distingui-los (Cfr. Elias, 1994). Noutra sua obra, o autor escreve: (Cfr.
Elias, 1991, p.78):”Du fait même que la commande relationnelle relativement
indéfinie du nouveau-né ne se définit et ne se règle pour prendre forme
véritablement humaine qu'au travers du rapport avec les autres, ce que nous
rencontrons par la suite sous la forme de “psychisme” de l'adulte ne peut être
pas en soi extérieur à la société ou asocial, mais est au contraire fonction de
cette unité relationnelle d'ordre dominant que nous appelons la “société”;
toute la façon dont l'individu se considère et se dirige dans les rapports avec
les autres dépend de la structure du groupe humain dont il apprend à dire
“nous”.
[4] O que o próprio Weber não deixou de perceber
e analisar, na esteira dos filósofos neo-kantianos.
[5] Veja-se, a este respeito Iorgu Iordan, 1982,
pp.373 e seguintes.
[6] O que, como resulta claro,
implica, pelo menos em alguns casos, toda uma sociologia do conhecimento e,
mais particularmente, uma sociologia do conhecimento científico. Seria talvez
pertinente questionar, noutro âmbito, se pode haver uma gnoseologia consequente
que não leve em conta os contributos de uma sociologia do conhecimento.
[7] Uma teoria objectiva da
probabilidade, como a defendida por Karl Popper (Cfr., Popper, 1998, pp.
160-236 ) que propõe um cálculo probabilístico baseado nas frequências já
observadas, não o fará, pensa-se. Porque, não se conhe- cendo distribuição de
frequências nenhuma, não se pode tecer considerações rigorosas acerca das
distribuições a observar.
[8] De acordo com a Lei dos Grandes Números.
[8] De acordo com a Lei dos Grandes Números.
[9] Sobretudo se se perfilhar a postura de
Passeron, que atenua, ou mesmo dissolve, num certo sentido, a distinção entre
estratégias de investigação “quantitativas” e “qualitativas” (cfr. Passeron, 1995,1996).
Pedro Magalhães, sociólogo e especialista de grande notoriedade na realização de inquéritos e sondagens eleitorais, no seu livro "Sondagens, eleições e opinião pública", da Fundação Francisco Manuel dos Santos, escreve alguns parágrafos que julgo interessantes para ilustrar alguns dos problemas com que, no plano teórico, me debatia quando escrevi as linhas acima: "Um dos recursos excepcionais de que o Partido Azul [organização hipotética, nota de ACM] dispõe é uma lista completa de todos os membros da população sobre a qual pretende fazer inferências, neste caso, uma lista completa de todos os eleitores e seus contactos directos. Desta lista, é fácil extrair uma amostra aleatória. Como se isso não bastasse, o 'call center' do Partido Azul parece lidar com uma população que se consegue contactar facilmente e que, invariavelmente, aceita que as suas opiniões, atitudes e comportamentos sejam medidos através das sondagens. Este cenário corresponde à realidade? A resposta óbvia é: 'Não.'
ResponderEliminarO problema começa na dita lista. Um dos hábitos da imprensa portuguesa é publicar, nas vésperas de eleições, artigos sobre os 'eleitores-fantasma', ou seja, registos individuais de eleitores recenseados eleitoralmente mas já falecidos. Abundam estimativas sobre esses valores, nem todas concordantes, mas suficientes para dizer que as bases de dados da Direcção-Geral da Administração Intrena não coincidem perfeitamente com o elenco real dos eleitores. Por outro lado, apesar de a revisão do funcionamento do recenseamento eleitoral ter, ao instituir o recenseamento automático, resolvido outro problema antigo - indivíduos com 18 ou mais anos que não se encontravam recenseados - há um que ainda permanece: indivíduos que se encontram recenseados em Portugal mas que residem no estrangeiro a tempo inteiro, não sendo por isso presumíveis votantes. Não existe, assim, uma lista completa e absolutamente fiável dos eleitores portugueses.
Mas imaginemos que se conseguia realmente a dita lista, limpa de eleitores-fantasma, sem registos repetidos ou quaisquer outros problemas. Para que ela fosse igual à lista miraculosa do Partido Azul, seria preciso mantê-la permanentemente actualizada, o que é impossível de fazer a um ritmo frequente. E mesmo que concebêssemos a possibilidade de uma lista permanentemente actualizada, essa lista teria de ter os contactos directos de todos os seus eleitores, sejam as suas moradas, os seus números de telefone fixo, os seus números de telemóvel, ou os seus endereços de correio electrónico.
(...) Façamos, contudo, um esforço derradeiro de imaginação e concebamos a possibilidade de que semelhante coisa [a lista, nota de ACM) pudesse existir. Algo ficaria ainda a faltar: a garantia de que os membros aleatoriamente seleccionados dessa lista seriam de facto contactados e que todos aceitariam responder à sondagem. Se isso não acontecer, a amostra e os seus atributos medidos através de um inquérito não serão representativos da população (...). Pelo contrário, tenderão a ser representativos da população que se consegue contactar e que aceita responder a sondagens. E nada nos garante que essa parcela da população tenha os mesmos atributos que a população muito mais vasta sobra a qual se quer fazer inferências.
Este tipo de problemas coloca-se em relação a quase todas as populações humanas sobre as quais queiramos recolher informação. Só no interior de empresas, escolas, universidades, associações e outras organizações é que um investigador pode contar com a possibilidade - que nem sempre se concretiza - de dispor de uma lista completa de membros e seus contactos. E nem assim se garante que o contacto efectivo se realize e que os contactados aceitem colaborar no inquérito. Isto significa que, na maior parte dos casos, não existe tal coisa como 'os resultados de um inquérito a uma amostra aleatória representativa de todos os membros de uma determinada população'. "