segunda-feira, 29 de junho de 2009

Individuações


De acordo com Danilo Martuccelli, aquela que talvez seja a figuração dominante do indivíduo humano no Ocidente – e isto ao longo de séculos e épocas diversas -, é aquela que o representa como mestre e senhor de si mesmo. A ideia de um indivíduo autónomo, independente, capaz do controlo de si mesmo e de uma expressividade própria indica, segundo Martuccelli, a presença de uma figura que, sendo identificável noutras épocas e contextos, assume preponderância e centralidade no seio da modernidade, nas suas múltiplas expressões nacionais, de classe, políticas, etc. Em comum às diversas expressões por ela assumidas, porém, pode identificar-se esse grande traço caracterizador, dominante na época moderna, que é o da figuração do indivíduo capaz de se manter do interior.
Esta capacidade de manutenção do interior consubstancia-se em quatro diferentes dimensões ideais dos indivíduos, no seio de um projecto de modernidade, mas também de uma modernidade fortemente realizada. São estas quatro dimensões que, segundo o autor, melhor firmam uma visão da passagem de uma figuração não moderna dos indivíduos para uma sua figuração propriamente moderna.
Estas dimensões, venho de referi-las indirectamente. Desde logo, existe a autonomia, ou seja, a competência para se fixar as próprias orientações da sua acção. Em segundo lugar, a independência, nomeadamente face a laços mais exactamente comunitários, como muito precisamente atesta a passagem, para retomar a terminologia de Ferdinand Tönnies, da comunidade à sociedade, ou ainda, na terminologia weberiana, de uma modalidade de constituição do laço social comunitária a uma modalidade societária. Os processos históricos que promovem a realização desta transição estão bem documentados em diversas obras, mas uma sua interessante expressão, pensamos, é dada por Émile Durkheim através da sua célebre distinção evolutiva entre uma solidariedade mecânica e uma solidariedade orgânica. Esta dimensão leva-nos directamente à terceira. O indivíduo capaz de se situar no seio do emaranhado relacional típico de sociedades crescentemente diferenciadas, por exemplo do ponto de vista da respectiva divisão social do trabalho, de uma forma racional, controlada, calculadora e funcional por referência àquilo que são os seus interesses, autonomamente definidos e independentemente prosseguidos é um indivíduo capaz de um forte autocontrolo pessoal. A terceira dimensão que Martuccelli indica é, pois esta: a capacidade de autocontrolo. Como é consabido, foi Norbert Elias quem melhor, mais profunda e sistematicamente explicou este processo, que implica um forte auto-controlo sobre as pulsões e os afectos, consubstanciado na emergência de uma nova sensibilidade, civilizada e justamente promotora da passagem das sociedades humanas, nas modalidades de vida psíquica que as suas cadeias e constelações de interdependências configuram, a um novo equilíbrio nas relações “nós-eu” – para retomar a parelha analítica avançada pelo sociólogo alemão. A leitura de Elias não deixa, aliás, qualquer dúvida a este respeito: o autocontrolo dos afectos e das pulsões específico do processo de civilização dos costumes que o autor brilhantemente identifica no seio da dinâmica das sociedades ocidentais é condição de possibilidade da própria modernidade.
A quarta dimensão que Martuccelli identifica, refere-se à expressividade. Expressividade, no sentido romântico, isto é, que remete para uma ideia de autenticidade original que o indivíduo transporta consigo, espécie de conjunto de atributos essenciais que o definem desde o seu estado mais germinal e que lhe cumpre realizar em pleno, através de um processo de crescimento que é também um processo - precisamente - expressivo. Expressão de uma singularidade e de uma autenticidade que são o signo da unicidade do eu, portanto.

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