terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Carta às almas piedosas (apócrifa)

Que horror me causam os livros, Senhores; que horror eles me causam. Que horror às boas almas hão-de causar. Pois quê? Não se encontram, neles, mirabolantes viagens, impiedosas sátiras, indigestas ironias, perturbadores conceitos? Onde, se não nos livros, se vislumbram iguais - e ainda maiores - artifícios? Isso, artifícios - com que essa turbamulta de escrevinhadores espalha o mal e a sua sombra por esta nossa terra.
Tomemos o caso da juventude; é nos livros que ela se corrompe. É pela leitura, estranho e esotérico labor, que se impõem aos espíritos fracos dos mais débeis dos jovens perniciosas e deletérias mentiras. Ou não é nos seus prometidos caminhos que os mais novos julgam discernir a prática de se questionar a ordem natural das diferenças?, a pretensão de se raciocinar de modo dito autónomo e individual (expressões vazias, cujo sentido se desconhece e a nada correspondem, pois claro)?, de se desrespeitarem, enfim, a regra e a ordem estabelecida das coisas?
Que desequilíbrio, Senhores - e que imperfeição nos traz a leitura. É no próprio tecido das coisas que penetram suas artes de engano, as mesmas que sugerem possível alterar o olhar e o pensar dos homens. Velhos e novos, grandes e pequenos - assim se encontram, sem disso se darem conta, distantes da realidade e caídos no vazio exorbitante da especulação indolente!
É a soberba, a jactância, o egoísmo dos leitores, esse género decaído de homens; não os ouvis? Acaso não os ouvis perguntar sobre a razão da hierarquia?; sobre a causa das coisas?; sobre a natureza do próprio pensar? Assim constroem essa insuportável e arrogante distância sobre a urgência das coisas, assim julgam subtrair-se à necessidade verdadeira, imponente e toda-poderosa do mundo. Como esse infame e pusilânime Português, que, dissoluto, sugeriu que os havia - aos que se vão da lei da morte libertando.
Senhores, que tempos bons, os da minha aldeia! Quando o horizonte era o do olho e não havia notícia de semelhantes desregramentos. Puxava o boi o carro sem se perguntar o porquê de fazê-lo e sem, por isso, deixar de saber como e para onde ia!

1 comentário:

  1. Está "demasiado" brilhante!
    Com o tom certo e com a ironia que chegue.
    Adorei.

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